sábado, 12 de junho de 2010

Você Deu Errado

Uma criatura humanóide. Uma cabeça, dois braços e duas pernas. Talvez a criação de um cientista, ou um sobrevivente de uma explosão nuclear, ou a tentativa de pais terem um filho.

Uma criatura deformada. Com as costas curvadas, os ossos da espinha aparentes. As costelas saltando para fora da barriga, as pernas e os braços finos demais. Um lado do corpo maior que o outro, fazendo mancar.

Essa criatura é você.

Criado para uma finalidade. Tentaram obter um bom resultado, mas acabaram conseguindo você. Você não é como esperavam. Trabalharam duro para fazer algo perfeito. Mas deu errado. Você deu errado.

Das outras vezes, obtiveram humanóides perfeitos, eretos, simétricos, lisos, do tamanho certo. Ao te produzirem, fizeram tudo como deveria ser. Mas por uma questão de azar, você deu errado.

Você não pode fazer nada. Está fora da sua capacidade, que já é bem limitada, mudar você mesmo para melhor. Eles já tentaram te consertar. Mas não deu certo. Você não tem conserto. Você já foi criado assim. Não há como te mudar. Você deu errado.

Você é uma decepção. Um fardo. Você é um peso para os seus criadores. Eles não podem te deixar junto com os humanóides perfeitos. E não podem te jogar no lixo. Eles não conseguem achar nenhuma utilidade para você. Não sabem o que fazer com você. Você só ocupa espaço, e não ajuda em nada. Queriam voltar atrás, te refazer, ou então te descartar. Mas agora já não dá mais. Por que você é responsabilidade deles. E você deu errado.

Você não tem utilidade para ninguém. Você é um peso. Mas os seus criadores te criaram. Não te podem descartar, mesmo que você só traga problemas para eles. E afinal, você continua sendo uma aberração. Um fardo. Você deu errado.

E isso vai ser sempre assim. Nunca vai mudar. Você já nasceu assim. E vai ser assim para o resto da sua vida. Da sua vida fútil. Observando os humanóides perfeitos, enquanto se contenta em ser uma aberração. Um problema na vida dos seus criadores. Uma aberração que deu errado. Você deu errado.

O que você é mesmo? Talvez a criação de um cientista, ou um sobrevivente de uma explosão nuclear, ou a tentativa de pais terem um filho.
A tentativa de pais educarem um filho. Que deu errado.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Nem por um Momento

Fazia tempo que eu não falava com Ela. Lembro-me de quando passávamos quase todos os dias juntos. Foi uma época muito boa. Pena que chegou ao fim. Eu ficava tardes inteiras com ela, a afagando, a abraçando, a beijando. Ainda me lembro do calor de seu corpo, o cheiro de seus cabelos, me lembro da sua voz fina e delicada, sussurrando palavras excitantes em meus ouvidos. Lembro-me das tardes que passávamos juntos, deitados na relva dos pastos, quando ainda íamos juntos para a fazenda dos pais dela. A última vez que fizemos isso, o vento soprava em nossos cabelos e os pássaros assoviavam. O céu estava azul com poucas nuvens. Eu peguei um ramo de girassol de um tufo e entreguei a ela.

Bons tempos. Às vezes sinto saudades dela. A forma como ela pegava em minha barriga, como chupava os meus lábios. Lembro-me de seu corpo perfeito. Muitos não achavam, mas eu achava. Ela era inteira perfeita para mim. Não era cheia de qualidades, mas era ela com quem eu queria passar a vida para escrever a minha história de amor. Ela somente era tudo o que eu queria.

Pena que não nos vemos mais. Cansei-me dela. Os hábitos dela me irritavam. Brigávamos muito. Ela era ciumenta, nunca me deixava sair sem ela. Eu estava perdendo os amigos, a família. Eu não estava mais vivendo por mim mesmo, estava vivendo por ela. Ela se entregava totalmente a mim, mas eu não queria isso. Eu queria que fôssemos independentes, que cada um fizesse o que quisesse. E não era isso que estava acontecendo. Estávamos presos um ao outro. Como se tivessem passado cola Super Bonder em nós. Isso me torturava. Eu tive que deixá-la, para o bem de nós dois.

Desde lá, até que tenho passado bem. Já arranjei outras garotas. Só que, nenhuma delas eu amei tanto quanto ela. Voltei a sair quando eu quero e com quem eu quero, sem estar preso a ela fisicamente. Mas continuo preso a ela em pensamentos: Onde quer que eu vá, vejo algo que me lembra dela. Lembro das coisas boas que fizemos juntos, dos sentimentos que tivemos um pelo outro, das nossas transas inesquecíveis. Mas não suporto o sentimento de falta de liberdade de quando eu ainda estava com ela. A total dependência que tínhamos um do outro. Isso era terrível. Tenho certeza que estamos melhor agora.

Ontem passei pela primeira vez na frente da casa dela, desde que nos separamos, e a avistei. Seus olhos se arregalaram e brilharam quando ela me viu. Ela estava debruçada sobre a janela com um vaso azul entre os braços. E dentro do vaso, estava o girassol da última vez que nos vimos. É lógico que, com o tempo, ele murchou. Mas ela ainda o guardava. Eu tentei passar reto. Ignorá-la. Mas não consegui. Perguntei por que ela ainda guardava aquela flor.

“Ela praticamente morreu, mas é tão importante para mim, me lembra de tantas coisas boas, que eu não parei de tentar revivê-la nem por um momento”