quinta-feira, 24 de maio de 2012

Perguntas sem Respostas


- Oi.
- ...
- Por que você está aqui?
- Sei lá. Só quero refletir um pouco.
- Você está triste?
- Não.
- Mas não está bem.
- Estou sim.

Ela ficou encarando-o. Ele rapidamente a fitou por alguns instantes, com a sobrancelha arqueada, e depois voltou seu olhar para baixo. Não queria ferir seu orgulho expressando a necessidade de um ombro amigo, mas seu coração gritava por socorro. Ela percebeu. E também reparou que ele queria que ela insistisse. “Atitude infantil”, ela pensou, “Mas o que ele mais precisa é sentir que alguém realmente se importa com ele”.

- Tem certeza? Você não está precisando de nada?
- Não sei. Estou meio confuso.
- Como você está se sentindo?
- Preso. À rotina. Parece que é tudo sempre igual... E que ainda falta alguma coisa.
- Não entendo. O que é essa coisa?
- Eu queria fazer algo diferente. Beijar alguém. Eu queria ser mais valorizado.
- Mas eu sou sua amiga e te valorizo! E não sou a única.
- Eu sei... Mas é diferente. Parece que o que eu sinto não é o suficiente.
- E o que você sente por nós?
- Vocês são meus amigos, e são maravilhosos. Mas mesmo assim parece que falta algo, como se vocês estivessem sempre sorrindo para mim, só que do outro lado de uma parede de vidro.
- Quê? Eu pensei que nós te alegrássemos...
- E vocês me alegram. Eu não poderia pedir a Deus para ter amigos melhores do que vocês. Mas ainda parece que falta alguma coisa dentro de mim, e não ao meu lado.

Ela olhou para baixo, tentando entender o que ele estava querendo dizer, mas não conseguia. Antes ela estava com a esperança de animá-lo. Talvez até tê-lo chorando ao seu ombro. Mas agora, estava ficando confusa e desanimada.

- Você acha que nós não te valorizamos o suficiente?
- Valorizam, sim. Vocês são as melhores pessoas do mundo nisso. Eu não sei o que faria se não os tivesse sempre ao meu lado, me pondo pra cima e me elogiando. Eu provavelmente me afundaria em uma crise de baixa autoestima.
- Mas... Se é assim, por que você ainda não se sente bem?
- Não sei. É complicado. Não consigo descrever meus sentimentos.
- Eu não vou conseguir te ajudar se você não tentar.
- Eu acho que você não vai conseguir me ajudar mesmo se eu tentar.

Ela suspirou. “Ele é irritante. Não sei por que ainda estou aqui, devo gostar muito dele para aturá-lo quando diz essas coisas.” Ela o encarou. Pegou em sua mão e recostou a cabeça em seu ombro, acariciando suas costas com a outra mão. Eles ficaram um tempo em silêncio. Ele, com os lábios apertados, fitava o vazio, refletindo.

- Eu tenho a impressão de tudo o que eu fiz até hoje para me sentir bem não foi o suficiente.
- Por que não?
- Eu não sei. Eu sempre coloco algo como meta pensando que vou atingir um nível de epifania ao concluí-lo. Mas quando finalmente atinjo meu objetivo, não me sinto satisfeito. Pelo contrário, acabo ficando ansioso por conseguir mais, e mais, e mais... Eu poderia até dizer que sinto um pouco de remorso por não ter sido melhor.
- Não entendi nada.
- Eu imagino. Meus pensamentos não fazem sentido, não é?
- Nem um pouco.


Os dois olharam para o céu. Algumas nuvens bem brancas vagavam no meio da imensidão azul. Ao redor, o som do vento, alguns pássaros. Cachorros latindo bem longe, e, mais ao fundo ainda, o ronco de motores. Ela se ajeitou um pouco ao seu lado. Ele se sentiu bem por tê-la abraçando-o.

- Você gostaria de beijar alguém?
- Sim. Mas não qualquer pessoa. Eu quero beijar alguém, sei lá... Bonito.
- Que estranho. Quero dizer, quando uma pessoa sonha em estar com alguém, esse alguém é específico. E não um bonito genérico...
- É. Talvez... Eu acho que esse meu alguém genérico, na verdade, é específico.
- Ah, agora estou começando a te entender. E essa sua vontade não é recíproca por parte da outra pessoa?
- É recíproca, sim.
- Então por que vocês não a tornam realidade?
- Eu não sei. Eu acho que é medo.
- Medo do quê?
- De no final dar tudo errado, sabe? Não sei se eu conseguiria conviver com essa pessoa. Tem várias coisas nela que eu odeio. Mas também tem várias coisas nela que eu adoro.
- Como assim?
- Sei lá. No início, nós nos entendíamos perfeitamente. Mas parece que não falamos mais a mesma língua. Essa pessoa mudou muito. Tornou-se só mais alguém que eu não conheço mais.
- Aposto que você não mudou menos do que essa pessoa.

Ela olhou o rosto dele. Os cantos da boca curvados para baixo, os olhos tristes e úmidos. Agora era ele que estava deitado em seu colo, recebendo cafunés consolativos.

- Eu sei que você está desabafando seus sentimentos comigo e que talvez o que eu tenho a dizer não faça muito sentido. Mas posso te contar o que eu estou pensando agora?
- É claro.
- A minha vida é uma constante interrogação. Eu sempre estou fazendo perguntas.
- Realmente. Principalmente para mim.
- E muitas pessoas me oferecem respostas. E eu as aceito e as levo comigo. Eu não deveria fazer isso.
- Por que não?
- Na verdade, é como se todos respondessem as minhas perguntas, mas não para mim, e sim para si mesmos. Como se todos os indivíduos do universo estivessem cegos, e eu acabo incomodando-os quando tento tirar as minhas vendas. As respostas que me dão são somente uma tentativa de enterrar minhas questões.
- Realmente. Isso não faz sentido nenhum.
- Haha, agora trocamos de papel, não é?

Eles sorriram. A incerteza mútua tornou o momento mais confortável do que ele seria se em solidão. Afinal, qualquer pessoa se sente melhor acompanhado do que sozinho.

- Sabe, criticar não é legal. Eu só queria viver. Eu só queria amar. Mas tudo se torna mais difícil quando todo mundo quer impor a mim o que eles pensam e consideram certo.
- Eu sinto saudades.
- Saudades do quê?
- Eu não sei. Você não se sente mal por todos quererem manipular as suas respostas?
- Um pouco. É triste quando a gente percebe que o mundo não é nada daquilo que nós imaginamos. Mas afinal, não existem respostas para a vida. E ignorar o que dizem seria como não viver e não amar. Seria mais triste ainda.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Crise da Meia-Idade


Eu ligo o fonógrafo, coloco meu disco de jazz favorito, pego minha xícara de chá e vou ler a gazeta na minha poltrona. Aperto os olhos para tentar distinguir as letras, e percebo que estou sem óculos. Falando nisso, preciso retornar ao oftalmologista, porque os que eu uso agora já não são mais o suficiente para a minha visão. Quando volto e finalmente começo a ler o jornal, dou uma bebericada no chá. Sinto meu bigode molhando. Quando já estou no terceiro parágrafo da matéria, reparo que eu não me lembro de nada do que tinha lido.

É horrível quando a gente percebe que já está velho demais para começar a fazer algumas coisas. É como se minhas forças vitais começassem a se decompor dentro de mim. “Eu estou apodrecendo”, penso. “Perdi tempo”. E tudo o que eu sempre faço é perder meu tempo e minha vida.

“Com a velhice vem a experiência” uma vez me disse um senhor que eu conheci na praça, jogando dominó. Já não me recordo mais de seu nome. Eu me sinto mal toda vez que me lembro dele. Nós ficávamos batendo papo sobre remédios, sobre a enfermeira que o atendeu no hospital e sobre seus entes queridos falecidos. Afinal de contas, o que é a experiência?

experiência |eis|
(latim experientia, -ae, ensaio, prova, tentativa)

s. f.
1. Ato de experimentar.
2. Ensaio.
3. Tentativa.
4. Conhecimento adquirido por prática, estudos, observação, etc.; experimentação.
homem de experiência: homem conhecedor das coisas da vida.

Acho que descobri o motivo de eu me sentir tão velho, mesmo tendo só dezoito anos. Posso não ter envelhecido quase nada, mas o pouco de idade que eu tenho ganhado está vindo totalmente isolada de qualquer forma de experiência. Não faço coisas novas, não conheço gente nova, não aprendo nada novo. A única coisa que tem acompanhado meu envelhecimento (deveria dizer formação, porque sequer sou um adulto ainda) é uma crescente culpa. Provavelmente serei um velho amargurado por não ter vivido a juventude enquanto tinha vitalidade.

Eu gostaria de sentir o sangue correndo em minhas veias. Mas tenho a impressão que em seu lugar só existe lama. Lama não: Lodo. Um lodo pútrido e fedorento, que me consome a cada dia. É... Eu estou sendo trágico demais. Mas não me culpem, só estou tentando por um pouco de emoção na minha existência. De uma forma bem velha: Escrevendo.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Três Momentos


Nós saíamos do bar, andávamos na rua, lado a lado. Passando por de baixo das luzes dos postes. Ouvíamos as músicas animadas tocando, as pessoas conversando e rindo, um carro passando, um copo quebrando. Ele estava do meu lado, mas não estávamos de mãos dadas. Eu não gosto de andar de mãos dadas. O primeiro motivo é porque parece que você está exibindo a outra pessoa como se ela fosse um troféu. Como se você dissesse “Olha, eu namoro e você não”. O outro motivo é porque parece uma forma de controle. “Ande do meu lado, fique só comigo”. Eu não acho legal manter alguém que você gosta numa gaiola. As pessoas são mais belas quando elas estão livres.

Eu não me lembro do motivo pelo qual nós saíamos do bar. Era cedo para voltarmos para casa, o metrô ainda não tinha voltado a funcionar. Eu só sei que eu me sentia bem por ele estar comigo. Não conversávamos tampouco nos encostávamos, não fazíamos nada além de andar juntos. Tê-lo comigo era o suficiente para dar um sentido à minha noite.

Sentamos na calçada de uma rua escura, sem saída. Ficamos de ombros encostados. Eu olhava para o Converse marrom dele. Acendi um cigarro. Fiz um gesto oferecendo, mas ele gesticulou com a mão negando. Ele sempre recusa. Fiquei olhando para o rosto dele através da fumaça, ele sorria. É incrível como eu me sentia bem perto dele, mesmo sem conhecê-lo direito. Nós nunca conversamos muito, mas tínhamos intimidade por ficarmos juntos. Ele sempre do meu lado.


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 – Você está feliz?
 – Feliz é uma palavra muito forte, eu disse.

Peguei a minha xícara de chá com as duas mãos, deu um gole que aqueceu minha garganta. Depois a pus de volta sobre a pequena mesa de madeira que havia entre nós.

Todos nossos colegas estavam em uma festa, comemorando suas conquistas. Conquistas que nós dois também obtivemos, mas preferimos comemorar a sós. Ou não comemorar. Aglomerações me dão nojo.

Ele ficou olhando para mim, desanimado, com suas olheiras que nunca o deixavam. Suas roupas eram largadas, sem cor, sem vida, assim como as minhas. Todo o nosso redor era sem vida: Um quarto com paredes imundas, que costumavam ser brancas. Sofás antigos de couro marrom, rasgados e remendados. Móveis de madeira, quebrados. Tudo isso em meio a uma bagunça de papéis, garrafas, panelas, louças. Um calendário de 1998 na parede. Era uma casa abandonada. Mas nós não usamos a chaleira e as xícaras que encontramos lá, seria anti-higiênico. Trouxemos tudo de nossas casas.

A casa não tinha mais eletricidade; o aposento era iluminado por uma única janela, cuja cortina estava caída. Também não tinha abastecimento de água. A única coisa que os antigos donos deixaram para que pudéssemos usar foi o fogão com um botijão de gás inesgotado.

Fitei a densa neblina lá fora, atrás da janela. A (semi)solidão me fazia bem. Deixava-me tranquilo, satisfeito, infinito.


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Uma libélula entrou no banheiro. Ficou voando em frente ao espelho e depois pousou na pia. Mesmo estando parada, continuou movimentando suas quatro asas de forma lenta e delicada.

Olhei para o corpo dele atrás do vidro. A água caía do chuveiro sobre seus ombros e escorria por suas pernas. Ele pegou o sabonete e começou a se esfregar de forma trivial, com oscilações lentas e equilibradas. Um movimento suave de sua cabeça fez seu olhar singelo encontrar o meu.

O vapor subia do chão e turvava o vidro do box. Fiquei admirando-o por não mais que um segundo, mas minha impressão era de que passara a eternidade lá. É incrível a forma como o nada se parece com o infinito.

Eu não me excitava. Eu sequer o amava. Os momentos que estive com ele foram bons, mas tem uma hora que todas as coisas boas chegam ao fim. Minto. Não gosto da palavra “acabar”, mas nada é eterno: Tudo muda e nunca volta a ser o que era antes.

Então vi a libélula entrando no meio dos jatos d’água, caindo no chão e sendo sugada pelo ralo.