sábado, 30 de outubro de 2010

O Lugar Onde a Felicidade Existe


 Ana subia a colina, correndo por entre flores de diversas cores. Seu pequeno vestidinho azul esvoaçava ao vento, seu cabelo loiro balançava com seus pulinhos. Lá em cima, ela correu em volta de uma árvore, dando gargalhadas, como se procurasse algo. Então a brisa ficou mais forte e sementes de Dente de Leão caíram da copa da árvore e ficaram suspensas no ar, no formato de uma pessoa.

 O vento soou como se fosse uma voz humana, dizendo “ora ora, você me achou de novo!” Ana deu uma gargalhada infantil e sorriu para as sementes. Depois disse “é fácil encontrar você, Josh”.

 Em um piscar de olhos, as sementes se espalharam e caíram no chão. Ana saiu correndo de novo, descendo a colina, e entrando na floresta. Chegou a uma clareira onde o chão era de rocha e pelo meio dela passava um riacho, repleto de flores cor de rosa boiando nele. Deu alguns passos leves, olhando em todas as direções, a busca de Josh. Mas não percebeu que mais uma vez a brisa tomou uma forma humana, dessa vez fazendo flutuar flores lilás, bem atrás dela.

 Repentinamente, um colar de flores roxas caiu sobre Ana e fixou-se em seu pescoço. Ela deu um gritinho de susto, mas depois deu outra risada infantil. Ela se virou e abraçou Josh, mesmo ele não tendo um corpo de verdade. Ele também riu, junto com ela.

 “Eu te amo Josh, não quero nunca te perder” ela disse, “Eu também te amo” ele respondeu. Então eles ficaram deitados na grama, a beira do riacho, olhando um para o outro e sorrindo. Agora, Josh era formado por folhas cor de laranja, como as do outono.

 -Josh, eu estou ouvindo vozes.
 -São os seus pais te chamando. É hora de você voltar para o seu mundo.
 -Eu não quero voltar para o meu mundo!
 -Mas você tem. Você não pode ficar aqui para sempre.
 -Mas Josh! Eu quero ficara aqui! Minha vida não faz sentido lá, ela pertence a aqui! Eu não quero viver lá, sem você!Você é a única coisa que eu amo!
 -Mas Ana, você tem os seus pais...
 -Eu só sou uma pessoa de verdade aqui! Lá eu não sou ninguém! Lá, minha vida não faz sentido! Meus pais não ligam para mim, eles estão sempre brigando... Por favor Josh, não me deixe ir... Eu te amo...
 -Sinto muito, mas essa escolha não é minha... Eu também te amo...

 Ana viu tudo ao seu redor ficando escuro. As folhas que formavam Josh passaram do laranja para o marrom, e depois se despedaçaram e se desintegraram. Ana foi sendo puxada para a escuridão.

 Até que abriu seus olhos vagarosamente. Ela viu a parede de seu quarto, feito de blocos sem rejunte. Estava com frio. Seu pai devia ter acabado de chegar. Estava com voz de bêbado, gritando coisas do tipo “Sua vadia, como deixou o meu jantar esfriar?!” para a mãe de Ana. E de resposta, Ana só ouvia os choros dela.

 Então Ana derramou uma lágrima, que caiu no travesseiro cuja fronha tinha estampa de singelas florezinhas. “Josh, por que você me deixou?”

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Indiferença


 Feliz Dia de Nossa Senhora Aparecida; Dia das crianças não é feriado.
 Outro texto antigo, dessa vez uma crônica:

Suzana odiava aquele emprego. Ela trabalhava no diário local, mas não era repórter. Ela andava o dia inteiro pela cidade procurando pessoas sem importância nenhuma para dar avisos, discutir sobre coisas inúteis ou analisar se há a possibilidade de o caso delas virar uma notícia, para depois uma pessoa mais importante do que Suzana entrevistá-la.

Já passava das sete horas, era inverno e a noite era fria e escura. Suzana dirigia um pequeno e apertado uno branco com adesivos da empresa. Aquele era seu último destino do dia, ela deveria levar a notícia da vitória ao vencedor do concurso de redações do jornal. O problema era que ele morava em um complexo de difícil acesso. As ruas eram escuras, cheias de buracos e quase impenetráveis. Suzana já estava ante a última rua antes da do seu destino. Era uma grande ladeira, as rodas do carro escorregavam na lama e os buracos e pedras fizeram a parte de baixo do carro ser atingida inúmeras vezes. As rodas derrapavam enquanto o carro continuava parado.  Ela parou de acelerar e desceu vagarosamente o pouco da rua que ela tinha conseguido subir.

Estacionou lá mesmo e desceu do carro. Ela estava de salto alto e seria difícil subir a mesma rua. Mas ela viu uma escadaria a alguns metros de distância, no meio do morro, que provavelmente daria no mesmo lugar. Resolveu seguir por ela. Alguns postes de luz iluminavam um pouco a escada em algumas partes, mesmo assim ainda era muito escuro. Podia-se ouvir o som de grilos, pessoas conversando e música em algum lugar distante. Os degraus eram irregulares e isso acabou deixando Suzana cansada. Ela avistou um pouco à frente, de baixo da luz de um dos postes, uma pessoa que andava de um lado para o outro. Usava roupas grandes, largas, provavelmente doadas. Um capuz escondia sua face. Ela ficou temerosa. Por quais motivos uma pessoa ficaria àquela hora andando de um lado para o outro, no meio do nada?

Ela achou melhor desviar, entrando em uma viela que ligava um dos patamares da escada à rua. Subindo a ladeira ela ficou mais cansada ainda. Passou na frente de um bar, de onde vinham as vozes e a música. Vários homens, todos de aparência horrível, desleixada, bebiam cerveja e riam alto. Provavelmente, todos bêbados. Era horrível de se ver aquilo. O que leva uma pessoa a aceitar isso como estilo de vida? Ela passou reto. Achou que os homens iriam mexer com ela, mas nem a notaram. Para sua sorte, o bar não era tão longe da rua do garoto. Ela foi até a casa que deveria ser onde o garoto morava. Ela bateu na porta. De dentro, ouviu gemidos e murmúrios. Ninguém apareceu. Ela bateu novamente e esperou um pouco.

Uma mulher gorda, toda descabelada e com os olhos inchados abriu a porta. Suzana pensou que ela provavelmente também estaria bêbada.  A mulher disse:
- “Quié”?
- Olá, eu sou Suzana, representante do Jornal local, e queria anunciar que o garoto Eduardo Souza venceu o concurso de redações que foi feito na escola dele.
A mulher fez uma careta. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Ela respondeu:
- Ele se suicidou...

Suzana ficou paralisada. Isso foi um choque. Ela não esperava isso. Sua respiração ficou descompassada. Ela não sabia o que fazer. Quando conseguiu se recuperar um pouco, disse “obrigada” e deu as costas para  mulher, que fechou a porta sem dizer nada. Suzana não conseguia parar de pensar nisso. Olhou os papéis, o garoto devia ter somente 16 anos. Por que motivo uma criança dessas iria se suicidar? Como deveria ser a vida dele, para chegar a esse ponto? Isso foi aterrorizante. Surpreendente. Ela não tinha palavras para descrever. Quem diria que um trabalho no diário como o dela poderia ser tão emotivo? Ela jamais havia imaginado passar por uma situação dessas.

Quando ela notou que estava descendo as escadas ao invés de seguir pela rua para não passar pelo garoto estranho, já era tarde demais. Lá estava ele, andando de um lado para o outro ainda, alguns metros a sua frente. Ela ficou com medo. Achou melhor seguir reto, indiferente, para não chamar atenção nem levantar suspeitas. Quando ela saiu da escuridão para a luz onde o garoto se encontrava, com seus passos rápidos e expressão indiferente, ele se jogou para o lado e ficou em posição defensiva. Ele se assustou com Suzana. Ela pôde olhar dentro do capuz. Era um garoto muito novo, devia ter 13 anos. Seus olhos expressavam medo, receio, preocupação. Suzana, surpreendida, ficou paralisada por um instante, mas logo o medo a fez sair de lá e continuar seu caminho. Seu coração estava quase pulando para fora da garganta garganta. Ela não conseguia pensar em nada até terminar de descer as escadas. Entrou no carro.
Enquanto voltava para a sede do diário, pensava nos acontecimentos daquela noite. Por que motivos o garoto havia cometido suicídio? E o outro que estava nas escadas, estava preocupado com o quê? Ela começou a se sentir culpada. Talvez o que se assustou com ela também estivesse pensando em suicídio. E na hora, ela só estava preocupada em sair logo de lá. Talvez o garoto precisasse de atenção, e ela pudesse fazer alguma coisa. Mas não. E agora ela estava indo para a sede do jornal e depois para casa, para poder tomar um banho e dormir em sua confortável cama.