terça-feira, 24 de julho de 2012

Não Tem mais Graça


e não tem mais graça. e eu vou encontrar algo melhor.

quanto mais escrevo, menos escrevo.
porque quanto mais escrevo, menos tenho sobre o que escrever
porque o que eu quero escrever, já foi escrito.

assim é você.
quanto mais eu te afago
menos eu te amo.

um explorador não pode explorar o território o qual ele já explorou
um cozinheiro não pode ainda cozinhar a comida que já foi cozinhada
e eu não posso continuar te comendo

simplesmente porque não faz sentido e não tem mais graça.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Asas de Ouro

Ela não é real. Eu não posso torna-la real.

Do lado de dentro do arco-íris, ela era perfeita. Inocente, apaixonada, um tanto quanto insegura. De primeira, seus olhos brilhavam a me ver, como os olhos de uma criança brilham a assistir um grande espetáculo no circo. Sua doce voz era a mais doce melodia, que tanto me regozijava escutar. A alegria que ela esbanjava era a geratriz da força que fazia meu coração pulsar mais intensamente a cada vez que eu via o seu sorriso.

E nós fomos nos conhecendo cada vez melhor. E ela foi se tornando cada vez mais importante para mim. Até o momento em que tudo o que eu fazia, fazia pensando nela. E com o tempo, meus olhos começaram a enxerga-la melhor, e os dela, a mim.

Do lado de fora do arco-íris, ela se tornou alguém totalmente diferente. Sua alegria pela minha imagem se tornou aversão ao espelho. Sua beleza natural foi se esvanecendo atrás de pós e tintas. Suas dúvidas inocentes transformaram-se em certezas incoerentes.

Do lado de fora do arco-íris, ela era alguém totalmente diferente daquilo que eu imaginava.

Eu rompi. Foi doloroso, mas eu a estava traindo. Estava traindo a garota meiga que eu conhecia com a garota (não) sensual que ela era. Eu a amava. Mas ela não era real.

As saudades e o arrependimento tornavam o meu coração pedaços. Eu voltei atrás. Tentei pedir perdão, mas quem devia me perdoar não estava lá. Tudo o que escutei foram acusações de alguém a quem eu não devia nada.

Toda vez que eu procurava a de dentro, encontrava a de fora. Afinal, a de dentro não existe.

Ela não é real. Eu não posso torna-la real.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Como o Mundo É Perfeito ao Seu Lado


Segure a minha mão
Vamos caminhar juntos
Pois não há beleza na solidão

Aspire esse doce aroma
Das flores que nos rodeiam
Sinta a água em nossos pés
E veja a beleza do azul infinito
Sinta o vento balançar seu vestido branco
Assim como dançam as folhas dos coqueiros

E quando anoite, a mesma calma
Sob a luz fraca, deitado no seu ombro
As feras fazem barulho lá fora
Mas para nós, isso é doce melodia
Pois ao seu lado me sinto infinito
Como se tudo fosse para sempre

Vamos juntos viver tudo o que o mundo nos oferece
Pois uma única vida é muito pouco para ser desperdiçado

Eu só preciso de um começo, um novo começo ao seu lado
Para poder te abraçar e nunca mais te soltar
Nunca mais te ver fluir por entre os meus dedos

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Insignificante


Um zumbido era a única coisa que passava por dentro da minha cabeça. Eu tentava enxergar o mundo, mas ele estava embaçado e girando à minha volta. Tentei encontrar o chão, mas a única sensação que meus pés me transmitiam era um agonizante confinamento. Estava ficando tão desesperado que arranhei o solo: Era a minha última chance de ter certeza de que estava em algum lugar. Não sei como descrever quão bom foi saborear cada um dos grãos daquela superfície áspera raspando entre a carne e a unha dos meus dedos. A dor intensa não superava a deliciosa sensação de que eu não estava perdido no universo.

Quando acabou, a sensação não era mais tão ruim. Mas ainda era muito ruim. Eu estava sem forças nem sequer para levantar do chão. Minhas pernas estavam bambas e minha cabeça doía. Eu só queria que tudo acabasse. Só queria dormir e esquecer a minha existência.  Eu nem sequer tinha um motivo para levantar do chão, poderia ficar ali até o dia da minha morte, que não demoraria muito. Não tinha ânimo para encarar a realidade. No mal estado em que me encontrava, a última coisa que eu queria era ficar procurando dinheiro para voltar para casa. Eu não tinha nem certeza se seria aceito em casa, daquele jeito.

A cada passo que eu dava, tinha cada vez mais a sensação de que havia milhares de pregos dentro do meu tênis. Cada segundo que passava demorava toda a eternidade, fazendo-me sentir imortal. Isso é, se eu pudesse dizer que estava vivo. Parecia que o zumbido e as pontadas no fundo do meu cérebro nunca mais me deixariam.

Fiquei ofegante. Era demais esperar que meu corpo exercesse tanto esforço nas condições em que eu me encontrava. Apoiei-me em alguma parede pelo caminho e deixei que meu corpo escorregasse vagarosamente até ficar deitado na calçada. No fundo, eu sei que o chão gosta muito de mim. Parece que existe uma atração irrepreensível entre a minha pessoa e a humilhação de cair em lugares imundos, impulsionada pelo fardo do fracasso que carrego em meus ombros. Ficar inconsciente na calçada é nojento. Chego a me comparar com os mendigos e os bêbados que se perdem na noite.

O raiar do sol é mais uma humilhação indireta de Deus. Todas as pessoas decentes já acordaram e agora se dirigem aos seus empregos. No final do mês vão receber o pagamento, comprar comida e aproveitar com a família, o que torna acordar um passo diário na busca de suas ambições. Enquanto isso, pessoas como eu só veem o amanhecer como mais uma etapa no fracasso de viver. A verdadeira humilhação é sentir o cheiro da borracha dos sapatos que quase pisam na sua cabeça, sem que os olhares de seus donos encontrem o seu.

Diziam-me constantemente que eu me sentiria um lixo, que nada disso jamais seria útil, que eu acabaria morrendo mais cedo. Mas o suicídio também sempre esteve em minha mente. Eu só escolhi uma forma alternativa, e um pouco mais lenta, de realiza-lo. Eu sei que assim eu acabo sofrendo mais. Mas pelo menos não estou destruindo a minha vida, porque, afinal de contas, ela nunca foi construída.



quinta-feira, 24 de maio de 2012

Perguntas sem Respostas


- Oi.
- ...
- Por que você está aqui?
- Sei lá. Só quero refletir um pouco.
- Você está triste?
- Não.
- Mas não está bem.
- Estou sim.

Ela ficou encarando-o. Ele rapidamente a fitou por alguns instantes, com a sobrancelha arqueada, e depois voltou seu olhar para baixo. Não queria ferir seu orgulho expressando a necessidade de um ombro amigo, mas seu coração gritava por socorro. Ela percebeu. E também reparou que ele queria que ela insistisse. “Atitude infantil”, ela pensou, “Mas o que ele mais precisa é sentir que alguém realmente se importa com ele”.

- Tem certeza? Você não está precisando de nada?
- Não sei. Estou meio confuso.
- Como você está se sentindo?
- Preso. À rotina. Parece que é tudo sempre igual... E que ainda falta alguma coisa.
- Não entendo. O que é essa coisa?
- Eu queria fazer algo diferente. Beijar alguém. Eu queria ser mais valorizado.
- Mas eu sou sua amiga e te valorizo! E não sou a única.
- Eu sei... Mas é diferente. Parece que o que eu sinto não é o suficiente.
- E o que você sente por nós?
- Vocês são meus amigos, e são maravilhosos. Mas mesmo assim parece que falta algo, como se vocês estivessem sempre sorrindo para mim, só que do outro lado de uma parede de vidro.
- Quê? Eu pensei que nós te alegrássemos...
- E vocês me alegram. Eu não poderia pedir a Deus para ter amigos melhores do que vocês. Mas ainda parece que falta alguma coisa dentro de mim, e não ao meu lado.

Ela olhou para baixo, tentando entender o que ele estava querendo dizer, mas não conseguia. Antes ela estava com a esperança de animá-lo. Talvez até tê-lo chorando ao seu ombro. Mas agora, estava ficando confusa e desanimada.

- Você acha que nós não te valorizamos o suficiente?
- Valorizam, sim. Vocês são as melhores pessoas do mundo nisso. Eu não sei o que faria se não os tivesse sempre ao meu lado, me pondo pra cima e me elogiando. Eu provavelmente me afundaria em uma crise de baixa autoestima.
- Mas... Se é assim, por que você ainda não se sente bem?
- Não sei. É complicado. Não consigo descrever meus sentimentos.
- Eu não vou conseguir te ajudar se você não tentar.
- Eu acho que você não vai conseguir me ajudar mesmo se eu tentar.

Ela suspirou. “Ele é irritante. Não sei por que ainda estou aqui, devo gostar muito dele para aturá-lo quando diz essas coisas.” Ela o encarou. Pegou em sua mão e recostou a cabeça em seu ombro, acariciando suas costas com a outra mão. Eles ficaram um tempo em silêncio. Ele, com os lábios apertados, fitava o vazio, refletindo.

- Eu tenho a impressão de tudo o que eu fiz até hoje para me sentir bem não foi o suficiente.
- Por que não?
- Eu não sei. Eu sempre coloco algo como meta pensando que vou atingir um nível de epifania ao concluí-lo. Mas quando finalmente atinjo meu objetivo, não me sinto satisfeito. Pelo contrário, acabo ficando ansioso por conseguir mais, e mais, e mais... Eu poderia até dizer que sinto um pouco de remorso por não ter sido melhor.
- Não entendi nada.
- Eu imagino. Meus pensamentos não fazem sentido, não é?
- Nem um pouco.


Os dois olharam para o céu. Algumas nuvens bem brancas vagavam no meio da imensidão azul. Ao redor, o som do vento, alguns pássaros. Cachorros latindo bem longe, e, mais ao fundo ainda, o ronco de motores. Ela se ajeitou um pouco ao seu lado. Ele se sentiu bem por tê-la abraçando-o.

- Você gostaria de beijar alguém?
- Sim. Mas não qualquer pessoa. Eu quero beijar alguém, sei lá... Bonito.
- Que estranho. Quero dizer, quando uma pessoa sonha em estar com alguém, esse alguém é específico. E não um bonito genérico...
- É. Talvez... Eu acho que esse meu alguém genérico, na verdade, é específico.
- Ah, agora estou começando a te entender. E essa sua vontade não é recíproca por parte da outra pessoa?
- É recíproca, sim.
- Então por que vocês não a tornam realidade?
- Eu não sei. Eu acho que é medo.
- Medo do quê?
- De no final dar tudo errado, sabe? Não sei se eu conseguiria conviver com essa pessoa. Tem várias coisas nela que eu odeio. Mas também tem várias coisas nela que eu adoro.
- Como assim?
- Sei lá. No início, nós nos entendíamos perfeitamente. Mas parece que não falamos mais a mesma língua. Essa pessoa mudou muito. Tornou-se só mais alguém que eu não conheço mais.
- Aposto que você não mudou menos do que essa pessoa.

Ela olhou o rosto dele. Os cantos da boca curvados para baixo, os olhos tristes e úmidos. Agora era ele que estava deitado em seu colo, recebendo cafunés consolativos.

- Eu sei que você está desabafando seus sentimentos comigo e que talvez o que eu tenho a dizer não faça muito sentido. Mas posso te contar o que eu estou pensando agora?
- É claro.
- A minha vida é uma constante interrogação. Eu sempre estou fazendo perguntas.
- Realmente. Principalmente para mim.
- E muitas pessoas me oferecem respostas. E eu as aceito e as levo comigo. Eu não deveria fazer isso.
- Por que não?
- Na verdade, é como se todos respondessem as minhas perguntas, mas não para mim, e sim para si mesmos. Como se todos os indivíduos do universo estivessem cegos, e eu acabo incomodando-os quando tento tirar as minhas vendas. As respostas que me dão são somente uma tentativa de enterrar minhas questões.
- Realmente. Isso não faz sentido nenhum.
- Haha, agora trocamos de papel, não é?

Eles sorriram. A incerteza mútua tornou o momento mais confortável do que ele seria se em solidão. Afinal, qualquer pessoa se sente melhor acompanhado do que sozinho.

- Sabe, criticar não é legal. Eu só queria viver. Eu só queria amar. Mas tudo se torna mais difícil quando todo mundo quer impor a mim o que eles pensam e consideram certo.
- Eu sinto saudades.
- Saudades do quê?
- Eu não sei. Você não se sente mal por todos quererem manipular as suas respostas?
- Um pouco. É triste quando a gente percebe que o mundo não é nada daquilo que nós imaginamos. Mas afinal, não existem respostas para a vida. E ignorar o que dizem seria como não viver e não amar. Seria mais triste ainda.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Crise da Meia-Idade


Eu ligo o fonógrafo, coloco meu disco de jazz favorito, pego minha xícara de chá e vou ler a gazeta na minha poltrona. Aperto os olhos para tentar distinguir as letras, e percebo que estou sem óculos. Falando nisso, preciso retornar ao oftalmologista, porque os que eu uso agora já não são mais o suficiente para a minha visão. Quando volto e finalmente começo a ler o jornal, dou uma bebericada no chá. Sinto meu bigode molhando. Quando já estou no terceiro parágrafo da matéria, reparo que eu não me lembro de nada do que tinha lido.

É horrível quando a gente percebe que já está velho demais para começar a fazer algumas coisas. É como se minhas forças vitais começassem a se decompor dentro de mim. “Eu estou apodrecendo”, penso. “Perdi tempo”. E tudo o que eu sempre faço é perder meu tempo e minha vida.

“Com a velhice vem a experiência” uma vez me disse um senhor que eu conheci na praça, jogando dominó. Já não me recordo mais de seu nome. Eu me sinto mal toda vez que me lembro dele. Nós ficávamos batendo papo sobre remédios, sobre a enfermeira que o atendeu no hospital e sobre seus entes queridos falecidos. Afinal de contas, o que é a experiência?

experiência |eis|
(latim experientia, -ae, ensaio, prova, tentativa)

s. f.
1. Ato de experimentar.
2. Ensaio.
3. Tentativa.
4. Conhecimento adquirido por prática, estudos, observação, etc.; experimentação.
homem de experiência: homem conhecedor das coisas da vida.

Acho que descobri o motivo de eu me sentir tão velho, mesmo tendo só dezoito anos. Posso não ter envelhecido quase nada, mas o pouco de idade que eu tenho ganhado está vindo totalmente isolada de qualquer forma de experiência. Não faço coisas novas, não conheço gente nova, não aprendo nada novo. A única coisa que tem acompanhado meu envelhecimento (deveria dizer formação, porque sequer sou um adulto ainda) é uma crescente culpa. Provavelmente serei um velho amargurado por não ter vivido a juventude enquanto tinha vitalidade.

Eu gostaria de sentir o sangue correndo em minhas veias. Mas tenho a impressão que em seu lugar só existe lama. Lama não: Lodo. Um lodo pútrido e fedorento, que me consome a cada dia. É... Eu estou sendo trágico demais. Mas não me culpem, só estou tentando por um pouco de emoção na minha existência. De uma forma bem velha: Escrevendo.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Três Momentos


Nós saíamos do bar, andávamos na rua, lado a lado. Passando por de baixo das luzes dos postes. Ouvíamos as músicas animadas tocando, as pessoas conversando e rindo, um carro passando, um copo quebrando. Ele estava do meu lado, mas não estávamos de mãos dadas. Eu não gosto de andar de mãos dadas. O primeiro motivo é porque parece que você está exibindo a outra pessoa como se ela fosse um troféu. Como se você dissesse “Olha, eu namoro e você não”. O outro motivo é porque parece uma forma de controle. “Ande do meu lado, fique só comigo”. Eu não acho legal manter alguém que você gosta numa gaiola. As pessoas são mais belas quando elas estão livres.

Eu não me lembro do motivo pelo qual nós saíamos do bar. Era cedo para voltarmos para casa, o metrô ainda não tinha voltado a funcionar. Eu só sei que eu me sentia bem por ele estar comigo. Não conversávamos tampouco nos encostávamos, não fazíamos nada além de andar juntos. Tê-lo comigo era o suficiente para dar um sentido à minha noite.

Sentamos na calçada de uma rua escura, sem saída. Ficamos de ombros encostados. Eu olhava para o Converse marrom dele. Acendi um cigarro. Fiz um gesto oferecendo, mas ele gesticulou com a mão negando. Ele sempre recusa. Fiquei olhando para o rosto dele através da fumaça, ele sorria. É incrível como eu me sentia bem perto dele, mesmo sem conhecê-lo direito. Nós nunca conversamos muito, mas tínhamos intimidade por ficarmos juntos. Ele sempre do meu lado.


--



 – Você está feliz?
 – Feliz é uma palavra muito forte, eu disse.

Peguei a minha xícara de chá com as duas mãos, deu um gole que aqueceu minha garganta. Depois a pus de volta sobre a pequena mesa de madeira que havia entre nós.

Todos nossos colegas estavam em uma festa, comemorando suas conquistas. Conquistas que nós dois também obtivemos, mas preferimos comemorar a sós. Ou não comemorar. Aglomerações me dão nojo.

Ele ficou olhando para mim, desanimado, com suas olheiras que nunca o deixavam. Suas roupas eram largadas, sem cor, sem vida, assim como as minhas. Todo o nosso redor era sem vida: Um quarto com paredes imundas, que costumavam ser brancas. Sofás antigos de couro marrom, rasgados e remendados. Móveis de madeira, quebrados. Tudo isso em meio a uma bagunça de papéis, garrafas, panelas, louças. Um calendário de 1998 na parede. Era uma casa abandonada. Mas nós não usamos a chaleira e as xícaras que encontramos lá, seria anti-higiênico. Trouxemos tudo de nossas casas.

A casa não tinha mais eletricidade; o aposento era iluminado por uma única janela, cuja cortina estava caída. Também não tinha abastecimento de água. A única coisa que os antigos donos deixaram para que pudéssemos usar foi o fogão com um botijão de gás inesgotado.

Fitei a densa neblina lá fora, atrás da janela. A (semi)solidão me fazia bem. Deixava-me tranquilo, satisfeito, infinito.


--


Uma libélula entrou no banheiro. Ficou voando em frente ao espelho e depois pousou na pia. Mesmo estando parada, continuou movimentando suas quatro asas de forma lenta e delicada.

Olhei para o corpo dele atrás do vidro. A água caía do chuveiro sobre seus ombros e escorria por suas pernas. Ele pegou o sabonete e começou a se esfregar de forma trivial, com oscilações lentas e equilibradas. Um movimento suave de sua cabeça fez seu olhar singelo encontrar o meu.

O vapor subia do chão e turvava o vidro do box. Fiquei admirando-o por não mais que um segundo, mas minha impressão era de que passara a eternidade lá. É incrível a forma como o nada se parece com o infinito.

Eu não me excitava. Eu sequer o amava. Os momentos que estive com ele foram bons, mas tem uma hora que todas as coisas boas chegam ao fim. Minto. Não gosto da palavra “acabar”, mas nada é eterno: Tudo muda e nunca volta a ser o que era antes.

Então vi a libélula entrando no meio dos jatos d’água, caindo no chão e sendo sugada pelo ralo.


sábado, 28 de abril de 2012

A Senhora e a Caixa


O trem parou em uma estação. Depois em outra. A certa altura, quando as portas se abriram, entraram várias pessoas, dentre elas uma senhora que ficou do meu lado. Ela usava roupas simples, seu cabelo estava preso, sua pele era cheia de pequenos furos e ela tinha bigode. Ela estava com a boca meio aberta, e os seus dentes eram tortos. Ela provavelmente era uma operária, pois o trem estava parado na estação de um bairro industrial. Ela carregava na mão esquerda uma bolsa branca e laranja daquelas que você ganha de brinde da empresa, e com a mão direita ela estava carregando uma caixa de sapato. As portas do vagão se fecharam e o trem começou a andar. A senhora se apoiou com as costas em uma barra do vagão, colocou a bolsa no chão e ficou segurando a caixa com as duas mãos, olhando fixamente para ela. Lá dentro devia haver algo muito valioso, bem mais valioso do que a bolsa e todo o seu conteúdo. Passamos por mais uma estação, e depois por outra. Até que o garoto que estava do meu lado se levantou, e a senhora da caixa de sapato se sentou no lugar dele. Então eu pude a observar mais de perto.

Ela pôs a bolsa do lado do banco e ficou segurando a caixa de sapato no colo, ainda sem tirar o olho dela. O trem deu um repentino solavanco, que a fez se assustar. Então ela levantou a tampa da caixa de sapatos, e eu pude ver o seu conteúdo. Era um filhote branco de coelho. Suas orelhas estavam tombadas para trás, ele provavelmente estava com medo de todo aquele movimento e barulho. A caixa estava cheia de bolinhas de ração espalhadas, e também havia duas tampinhas de garrafa. Uma delas estava com um pouco de ração dentro, e a outra estava tombada, com uma mancha de molhado no papelão sob ela.

A senhora começou a fazer carinho no coelho. Com o passar da mão, ela levantou alguns pelos e eu pude ver uma ferida no couro do pobre animal. Então ela disse “Não se preocupe, não vou deixar que te machuquem mais”. Ela respirou fundo e começou a passar os dedos entre as orelhas do animalzinho. “As pessoas matam qualquer coisa sem precisar de motivo, mas eu vou cuidar de você”, ela sussurrou tão baixo que se eu não estivesse prestando atenção, não a ouviria. Ela estava certa, os homens brigam por simples conceitos. Basta a ética de duas pessoas divergirem para elas se odiarem. Quem dera se todos os humanos se amassem da mesma forma que aquela senhora demonstrava amor por aquele coelho. Mas sempre há dinheiro, política, ideologias ou religiões envolvidos, para fazer com que as pessoas se odeiem e briguem, ou então se amem só por interesse.

O trem chegou ao meu destino e eu desci. A senhora e o coelho continuaram sua viagem. Minha casa não era muito longe da estação, então fui a pé. Já era noite, e as luzes dos postes estavam acesas iluminando um pouco as ruas. Atravessei o centro da cidade, passei por uma praça onde havia uma banda tocando “Imagine” no palco. Eu pude relacionar a letra da música com a minha experiência no trem. Quando cheguei em casa, fui tomar banho, e fiquei imaginando se a senhora já havia chegado na casa dela. Peguei-me desejando que o coelho sarasse e fosse bem cuidado pela sua nova dona. O mundo seria um lugar tão pacífico se todos pensassem da mesma forma que ela...

domingo, 8 de abril de 2012

Você Precisa Ser Padrão


Pam, pam, pam
Seja perfeito, seja perfeito
Pam, pam, pam
Você precisa ser padrão

Você já é perfeito para mim, mas

Pam, pam, pam
Você precisa emagrecer
Você precisa ser padrão

Pam, pam, pam
Compre roupas melhores
Você precisa ser padrão

Pam, pam, pam
Você precisa parecer
Você precisa ser padrão

A criança perdida na fábrica
Está perdendo a inocência
Ela não é um explorador
É só mais um produto

Seu sangue não é mais sangue
Óleo corre em suas veias
Sua pele está sendo sujada
Pelas mãos imundas dos operários

Pam, pam, pam
Seja perfeito, seja perfeito
Pam, pam, pam
Você precisa ser padrão

No final você é embalado
Empacotado, transportado
Estocado, adquirido
Usado, abusado, descartado

Você quer se diferenciar dos demais
Mas só se tornou mais um no padrão
Vão acabar tendo os mesmos finais
O lixo é o destino de toda a produção

sábado, 31 de março de 2012

Assim como Eu Esqueci


Isso não é sobre vingança
É só mais um perdão
Refazer nossa aliança
Já cansei dessa solidão

Não vamos mais ter esse problemão
Nunca, jamais, essa é a solução
Não vamos mais ter uma discussão
Nem olhar para trás, essa é a solução

Esqueça os problemas
Esqueça o que eu te fiz
Assim como eu
Esqueci

Que você pegou o meu coração
Pegou e jogou ele no chão
Se despedaçou em um milhão
E se espalhou de montão

Assim como eu esqueci
Que você estava rindo
No momento eu sofri
E você, se divertindo

Mas eu entendo
O que você fez
Estava fazendo
O melhor para você

E eu sei que você também
Está irado comigo
Mas você precisa relevar
Precisa esquecer

Assim como eu esqueci
Como eu esqueci
Assim como eu esqueci
De tudo o que

Relevei

quinta-feira, 22 de março de 2012

Lar


Paredes rachadas, tinta descascando. Janelas quebradas, mato e sujeira tomando conta de tudo. Esse é o meu lar.

É, o meu vizinho é organizado. Ele tem um gramado verde. Suas paredes estão bem pintadas, e suas janelas inteiras. Eu nunca entrei para ver como é por dentro, mas acredito que não seja pior do que o meu lar.

Pior? Meu lar é ruim?

É como eu estou acostumado. É como ele me completa. Talvez, se fosse bonito, eu daria um jeito de destruir tudo.

Porque na verdade, quem deixou meu lar assim fui eu mesmo. Eu e minha marreta de ferro.

Não sei se você sabe, mas é bom destruir as coisas. É aliviante. Você sentir todo o peso do cilindro de ferro voando por cima da sua cabeça e acertando em cheio alguma coisa bonita. Você não se sente novo, mas se sente conformado. Ao invés de fugir do ruim, você gera o ruim.

Talvez seja incômodo viver em um lar que esteja aos pedaços. Mas eu sei que a marretada que destrói minha parede emite um som que perturba o meu vizinho.

sábado, 10 de março de 2012

Oi



Eu sei que um dia tudo isso vai acabar. Não sei quando, mas vai. Pode ser a morte, pode ser uma divergência em nossos caminhos, pode ser um desentendimento. Mas o que importa é o que eu estou passando agora com você. É essa paz que eu sinto quando nós somos um. A vida pode ser dura, sem sentido, repleta de adversidades... Mas isso é o que faz valer a pena. Estar com você. Poder te abraçar, te sentir... Sentir a sua respiração no meu rosto. Sentir com as minhas mãos o seu coração batendo. É bom saber que você está vivo, e do meu lado. Talvez não seja um sentimento profundo, mas nós estamos conectados. Conseguimos conversar bem, e nos sentimos bem quando fazemos isso. Você sabe quão são valiosas as tardes que nós passamos juntos, somente conversando, falando sobre as nossas vidas, os nossos vícios e as nossas virtudes. É algo que me faz sentir vivo, e é algo que me vai fazer falta quando acabar.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Niflheim


Sabe, o céu quando está branco? Você não vê o Sol, a lua nem as estrelas. Você não tem nenhum guia além da sua própria confiança. E você procura um tesouro que possa fazer toda a sua vida ter sentido. Em um tropeço você encontra a arca enterrada, bem no meio do seu caminho. Você se esforça, a desenterra, pensa em desistir... Mas ela poderia ser a sua grande mudança para melhor! Ela poderia ter mais valor do que você imagina. Você tem fé que tudo vai melhorar. Mas quando finalmente consegue removê-la de sua cova, vê que com o tempo ela apodreceu e quando você tenta movê-la, ela se desmancha. Ela não foi feita para você levar. Ela não estava lá para te ajudar. Mas você já gastou tanto tempo com ela... Tanto esforço... Mesmo não sendo o que você procurava, ela já tem um valor para você, ela foi uma conquista! Pena que ela vai se desmanchando com o tempo... E os pedaços de madeira podre não são a única coisa que se perde. Os músculos podres que compõem o seu coração também vão sendo gastos. Até a hora que você acha que já sofreu demais.

"Vaidade das vaidades, diz o pregador, é tudo vaidade! Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho que faz debaixo do sol? Uma geração vai, e outra geração vem. Mas a terra para sempre permanece."

Sabe, ninguém gosta de desistir de amar. Ninguém gosta de desistir de ser feliz. Mas às vezes, você se sente ultrapassado. Como se tivesse sido deixado para trás. Como se, desde que nasceu, já estivesse sendo deixado para trás. As pessoas avançam, todos ao seu redor evoluem, menos você. Menos você. Isso acaba contigo. Como um câncer dentro de seus ossos, que te enfraquece e te desprepara para lutar. Parece que você nasceu para fracassar. Para conquistar todas as grandes coisas, para chegar à lua se assim você quiser. Mas para fracassar em tudo o que é pequeno. Para fracassar em seus relacionamentos, para fracassar em sua família, para fracassar em sua saúde, para fracassar em você mesmo.

"Todas as coisas são trabalhosas, o homem não o pode exprimir. Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos se enchem de ouvir. O que foi, isso é o que há de ser, e o que se fez, isso se fará. De modo que nada há de novo debaixo do sol."

A Bíblia pode ser um conto de fadas antigo, embora às vezes aparente mais como um cajado do que como um livro. Ela pode ser confusa, com várias contradições que muitos não querem ver, mas se tem um livro que me inspira é Eclesiastes. Ou partes dele. É incrível imaginar que Salomão, que viveu há três ou quatro mil anos atrás, já tinha um entendimento filosófico maior do que da maioria das pessoas dos dias atuais.

"Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito. Aquilo que é torto não se pode endireitar, aquilo que falta não se pode calcular. Falei com o meu coração, dizendo: Eis que eu me engrandeci e sobrepujei em sabedoria a todos os que houve antes de mim, e o meu coração contemplou abundantemente a sabedoria e o conhecimento. E apliquei o meu coração a conhecer a sabedoria e a conhecer os desvarios e as loucuras, e vim a saber que também isto era aflição de espírito. Porque na muita sabedoria há muito enfado, e o que aumenta em conhecimento, aumenta em dor."

O tesouro que a arca guardava era somente um pingente que ganhei de alguém. Mas o que o tornava especial era a arca em si, que o guardava e protegia, e sua madeira envelhecida, cheia de marcas de expressão, que contava a sua história.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Refração


Estou observando um horizonte cinzento ao pôr do Sol. O tempo passa ao meu redor, e as pessoas estão retornando aos seus lares. Eu não tenho um lar para voltar. O Sol não pode se pôr para mim.

Estou observando um horizonte cinzento ao pôr do Sol. O tempo passa ao meu redor, mas não passa dentro de mim.

O que você está fazendo? Ele diz. Mas meus olhos turvos não conseguem distingui-lo direito. Eu tenho que retornar à minha tarefa. O que você está fazendo, ein, mano? Ele diz. Eu olho para ele.

Meu coração quebrou. Meu coração quebrou, mano.

E agora, mano? Ele diz. Eu posso te ajudar?

Sim, eu trouxe cola. Olha aqui. Cola sempre conserta tudo, na falta de mães. Eu olho para ele. Confuso? Como pode não entender? Mães consertam tudo. Mas nem todos têm mães, e não se pode arranjar uma em qualquer lugar. Mas eu tenho cola, e ela tem o mesmo efeito.

E agora, mano? Ele diz. Como eu posso te ajudar? Você sabe... Com a cola? Onde eu passo?

Não passe. Só inale.

Estou andando sozinho na calçada. Cercado por prédios deteriorados, que um dia não existiam fora dos projetos de um arquiteto. Pessoas haviam comprado apartamentos antes deles estarem prontos.

Estou andando sozinho na calçada. Cercado por ruínas do que um dia foram sonhos.

Quando seu coração quebrou? Ele diz. Mas minha mente confusa não consegue recordar quem ele é. Eu tenho que retornar aos meus pensamentos. Quando seu coração quebrou, ein, mano? Ele diz. Eu tento lembrar dele.

Ele nunca esteve inteiro. E agora mesmo, ele está em chamas, mano.

E agora, mano? Ele diz. Eu posso apagar?

Não, é uma má ideia. Olha aqui. Mães, lares, todas essas coisas. Eu olho para ele. Confuso? Como pode não entender? Nada disso nunca foi real. Foram só sonhos. E agora restam só ruínas, em chamas. Restam só cinzas. Resta só essa fumaça que me sufoca.

E agora, mano? Ele diz. Como eu posso te ajudar? Você sabe... Apagar esse fogo? Acabar com a fumaça?

Não apague. Só inale.

Estou virando a cabeça para vomitar. Não posso vomitar em mim mesmo. Ficaria sujo, fedido. Mas por que as pessoas não querem ficar sujas e fedidas? Para agradar aos outros? Então eu não preciso virar a cabeça.

Estou virando a cabeça para vomitar. Não posso continuar vivendo em mim mesmo.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

A Grande Festa da Vida


Perfeição
Você sabe o que significa perfeição?
Para mim, perfeição é amar
E poder declarar esse amor para todos
E concretizar esse amor em uma grande cerimônia
Em uma grande festa
Na grande festa da minha vida

Grande!
Tinha de ser grande!
Grande para poder mostrar minha intenção
Em tentar mostrar a grandeza desse amor
Tentar mostrar
Porque na verdade esse amor não tem tamanho

O salão tinha de ser imenso!
Não uma igreja, mas uma catedral!
Uma orquestra de cem homens para tocar nossas músicas!
Assentos o suficiente para milhares de convidados;
Que dançariam juntos, sincronizados, na hora da festa

O banquete
E o banquete, então!
Pães, queijos, frios, salgados,
Frutas, brigadeiros, bolos, chocolates,
Lasanhas, pizzas, nhoques, risotos,
Martini’s, coquetéis, licores, vinhos,
Frangos, perus, leitões, carneiros!

Tudo servido na mais grandiosa mesa
Para unir toda família, parentes e amigos
Celebrando a mais grandiosa união entre dois amantes
A mais grandiosa mesa, coberta pela toalha branca
Decorada com flores, também brancas
E toda a prataria
Prataria na qual consigo me ver refletido
Refletido todo o brilho do meu sorriso
Todo o brilho da minha alegria

Todo o brilho da minha alegria.
Deixo para trás o salão, a gulodice e a vaidade
Desço todo a escadaria, por baixo dos imensos arcos
É noite, mas o jardim é bem iluminado
As estrelas, a brisa, o cheiro suave das flores
Tudo colabora para minha tranquilidade

Refiz o caminho, aquele caminho
Caminho pelo qual passaríamos
Para chegar até o salão de nossa cerimônia
Refiz o caminho, verificando cada milímetro
Para ter certeza de que tudo estaria perfeito
Para a nossa grandiosa festa

Havia um labirinto vivo no meio do jardim
Era vivo porque era feito de arbustos
Entrei, deixando o cheiro da noite me guiar
A cada passo que eu dava, estava mais perdido
Mas estava tranquilo, tranquilo até demais
Porque logo a festa começaria
E todos os convidados chegariam
E acabariam me encontrando

E acabariam me encontrando.
Mas eu estava errado, alguma coisa faltava
Alguma coisa muito importante em um casamento
Faltava um noivo.
Como eu poderia me casar se não tinha um noivo?
Todos aqueles preparos de nada valiam

Eu perdi muito tempo me preparando
Construindo o meu próprio mundo
Dentro de mim mesmo
E esqueci de me aventirar, de viver,
E de procurar alguém com quem dividir isso tudo
Agora, não havia mais ninguém, e eu estava sozinho
Sozinho e perdido, perdido para sempre
Dentro do labirinto que eu mesmo construí

Dentro do labirinto que eu mesmo construí.
Com meus próprios sentimentos
Com todo o meu sentimento de medo
Com todo o meu rancor
Toda a minha ansiedade
E a minha paixão

E agora eu estou perdido
Perdido na minha existência
Existência inacabável
Existência imensurável
Existência ininteligível
Existência incompreensível

Perfeição
Perdido,
Perdido dentro de mim mesmo.