terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Várias Pessoas, uma Única Existência

João era perfeitamente medíocre. Havia momentos em que tinha vergonha de si mesmo. Queria esconder quem ele realmente era. O seu passado vergonhoso, aquela mania estúpida, aquele medo irracional, aquela frustrante incapacidade de fazer aquela tarefa com a qual todos tinham facilidade. Tinha vergonha de seu pai, que não chegara a conhecer. Tinha vergonha de sua mãe, que de tão simples, mal sabia escrever. Tinha vergonha de si mesmo, por todas as coisas que seus pais deveriam ter-lhe ensinado quando era criança e que lhe faziam falta como adulto.

Antônio tinha o pé torto. Era gago. Vesgo. Não sabia tocar violão. Não falava inglês. Suas acnes lhe incomodavam. Queria ser mais baixo, pois acreditava que sua imensa estatura era responsável tanto pela sua aparência desengonçada quanto pelo fato dele ser desastrado.

Francisco tinha medo de fazer novas amizades. De que o achassem estranho. Tinha medo de falar besteira e passar vergonha. De falar alto demais e incomodar as pessoas. De acabar gargalhando e todos perceberem quão esquisita era a sua risada. Tinha vergonha de seu mau hálito. Simplesmente não conseguia conversar, pois as palavras certas não lhe vinham à boca, e suas tentativas de diálogo se resumiam a momentos de intenso e inoportuno silêncio.

Luiz não tinha namoradas. Não conseguia se aproximar de garotas. Não sabia o que falar. Muitas o achavam feio. Outras não gostavam de sua voz. Ele não sabia beijar direito. A garota com quem ele perdeu a virgindade contou para as amigas que ele era sem-graça, ruim de cama.

Quando fez dezenove anos, Paulo tentou arrumar um emprego. Era vendedor de uma loja de móveis. Quanto mais ele vendesse, mais dinheiro conseguiria. Mas no final, ele nunca conseguiu muito com isso. Seus colegas de serviço eram bem melhores do que ele. A agonia que tinham por vender mais do que os outros acabou fazendo com que Marcos ficasse para trás e fosse rebaixado para a área de assistência técnica da loja.

A aposentadoria da mãe de Manoel mal dava para comprar os remédios que ela precisava. Ela acabou ficando muito doente. Ele a levou à cidade grande e procurou um médico. Ela precisou ser internada. Mas a fila de espera para receber a cirurgia era tão grande que ela faleceu antes de ser tratada. Ele estava sozinho. Sem ninguém para ampara-lo, sofrendo as constantes punições e humilhações da vida. Até que encontrou Ana.

Márcia era mediocramente perfeita. Havia momentos em que tinha orgulho de si mesma. Queria que o mundo a visse da forma que ela queria. O seu futuro brilhante, as suas nobres virtudes, as suas iniciativas proativas, aquela invejável disposição de fazer as tarefas das quais todos tinham preguiça. Tinha orgulho de seu pai, que mesmo sendo divorciado e morando longe, ajudava financeiramente a filha. Tinha orgulho de sua mãe, que mesmo sendo simples, sempre fez de tudo para ver Joana bem. Tinha orgulho de si mesma, por todas as coisas que seus pais deixaram de lhe ensinar ela conseguiu aprender com a vida.

Francisca era encantadora. Tinha a voz bonita. Olhos verdes. Cantava bem. Conseguia se expressar bem. Seu olhar era profundo. Gostava de ser alta, pois chamava a atenção dos rapazes para o seu belo corpo.

Adriana tinha amigos. Eram estranhos, mas eram amigos. Falavam besteiras juntos, passavam vergonha juntos. Falavam alto e atazanavam uns aos outros. Quando estavam reunidos, gargalhavam tanto que até perdiam a voz. Eles simplesmente se davam bem. Não precisavam de uma ocasião especial para se encontrar, nem de um assunto para conversarem. Falavam sobre trivialidades e se sentiam bem com isso.

Antônia não tinha namorados. Não queria saber de compromissos, preferia aproveitar a vida. Alguns rapazes a pediram em namoro, mas ela não queria nada sério. Ela não gostava de rotular seus relacionamentos com palavras como “amigo”, “ficante” ou “namorado”. Ela gostava mesmo era de ter companhia e de poder fazer o que quisesse quando quisesse e com quem quisesse.

Quando fez dezenove anos, Sandra tentou arrumar um emprego. Era vendedora de uma loja de eletrônicos. Quanto mais ela vendesse, mais dinheiro conseguiria. Mas no final, ela nunca conseguiu muito com isso. Seus colegas de serviço eram melhores do que ela. Mas por outro lado, ela lidava bem com as pessoas, e isso não passou despercebido aos olhos de seu chefe. Patrícia foi promovida para a área de assistência técnica da loja.

A aposentadoria da mãe de Vera mal dava para comprar os próprios remédios, e por isso ela ficou muito doente. Ela a levou à cidade grande e procurou um médico. A mãe precisou ser internada. Mas a fila de espera para receber a cirurgia era tão grande que ela faleceu antes de ser tratada.

Josefa orava a Deus por sua mãe, desejando que ela estivesse em um lugar melhor, descansando, livre de todos os sofrimentos terrenos. Mas afinal, a jovem estava sozinha. Sozinha... Até que encontrou Carlos.

Eles formavam um casal perfeito. Completavam um ao outro. Logo no início do relacionamento já tinham planos. Iriam se casar, formar uma família, ter filhos. Trabalhar, juntar dinheiro, dar festas e fazer viagens. Juntos, iriam observar as nuvens e as estrelas. Sentariam lado a lado na praia, escutando as ondas. Viajariam pelas estradas do país, com as janelas do carro escancaradas e a música no último volume. Iriam passear no parque de mãos dadas. Iriam tomar café juntos, logo que acordassem, antes mesmo de tirar os pijamas. Eles seriam felizes. Juntos.

Não. Eles não foram felizes. Marcelo teve medo de dar continuidade ao relacionamento. Imaginava que, uma hora, tudo iria dar errado. Já passava pela sua cabeça a ideia de que Larissa mantinha casos com os seus antigos amigos. Tudo pioraria depois que casassem. Ricardo estava decidido a terminar com esse relacionamento, e assim o fez.

Os dois sofreram muito depois de romper.

As últimas palavras de Maria, antes de morrer, foram “Eu deixo a vida me levar. A frustração é o único efeito de tentar controlar o próprio destino”. Ela foi atropelada por um ônibus. Quando Roberto descobriu, afundou-se em remorso. “Devia ter aproveitado enquanto ela estava viva”, pensou. Deixou de amar e ser amado por praticamente motivo nenhum. Sequer teve filhos.

José teve uma vida medíocre até que a velhice. Uma gripe o levou embora. As suas últimas palavras foram “Não tive nada na vida, mas aproveitei a vida que consegui ter”.

sábado, 8 de outubro de 2011

Sempre Há Tempo

Ele levantou os trapos que o cobriam e se levantou da cama. Sua roupa larga estava começando a ficar suja, ele não a removia nunca. Deu alguns passos preguiçosos, tomando cuidado para não tropeçar com seus pés descalços. Pegou uma jarra na despensa, a destampou, colocou um pouco de água em uma caneca de madeira e bebeu. Tentou erguer sua postura corcunda espreguiçando e coçando a cabeça, enquanto olhava para a floresta pela janela. Tudo estava calmo e deprimente, como sempre esteve em sua vida solitária. Alguns pássaros voavam e o vento balançava as árvores. Tudo em seu lugar, exceto por aquela mancha azul, bem distante, se aproximando aos poucos. Ele esfregou os olhos. Estava com preguiça de acreditar no que vira. Não queria passar por tudo de novo. Voltou para a cama, e quis acreditar que dormia.

"Ré, eu sei que você está aí!" ela gritava enquanto dava murros na porta, "Me deixa entrar!". Ele só se virou na cama e tentou cobrir a cabeça com o cobertor. Ela, sem obter resposta, começou a chutar a porta. Emaré, ao ouvir o som de madeira estralando e com medo da porta ceder, se levantou. "Se você não abrir para mim, eu vou derru..." Ela dizia, antes dele silenciosamente aparecer na sua frente, com a porta já aberta. Suas olheiras profundas e seu cabelo desarrumado só intensificavam sua expressão de desgosto.

"Boa tarde", ele disse friamente. "Boa tarde", ela respondeu sem jeito, seu rosto corando. Eles ficaram se encarando na passagem da porta da casa por algum tempo. "O que você veio fazer aqui?" Ele quebrou o silêncio. "É que eu quero conversar..." Ela disse, timidamente. Ele ergueu uma sobrancelha, descontento com a resposta. "Não é tarde demais para a gente tentar de novo" Ela terminou. Ele deu as costas e fechava a porta enquanto dizia "Eu pensei que você já estava cansada de tornar a minha vida um tormento". "Espera!" Ela se exaltou, pondo-se em frente à porta, impedindo-o de fechá-la. Ele a encarou novamente, ainda descontente. Ela olhou para dentro da casa. Viu os vários livros, velas parcialmente derretidas e decorações macabras espalhados na mesa e nas estantes do humilde casebre. O pentagrama desenhado no chão com carvão. "Eu sei que você está tentando fugir do seu sofrimento. Eu não te culpo pelas coisas que você faz, eu entendo o que você sente. Eu sei que existe uma certa incompatibilidade entre nossos estilos de vida... Mas você é único para mim. Por favor, ouça o que eu tenho a dizer".

(...)

Os dois andavam lado a lado pela floresta, silenciosos. Ela ainda não tivera coragem para falar. Emaré chutava as pedras com seus pés descalços, cabisbaixo. Ela observava os grãos de poeira reluzindo nos raios de sol que passavam por entre as folhas das árvores. "Sabe, Ju... Eu não me encaixo no seu mundo. Quando éramos crianças eu até conseguia ver tudo de um ponto de vista positivo. Mas eu não queria seguir cegamente tudo o que o seus colegas hipócritas mandavam, e então me cuspiram na lama como se eu fosse sujeira em suas gargantas. E você simplesmente aceitou tudo, como se ideias não te perturbassem... Eu jamais conseguiria voltar a viver com você. Eu não suportaria ver as pessoas a quem você dá valor te rejeitando por minha causa. Ver sua vida ir por água a baixo por minha culpa seria uma tortura maior do que viver sem você. Eu achei que isso já estivesse claro, é terrível para mim te ver de novo. Você não sabe como eu fico quando volto para casa e me vejo sozinho, sem você..."

Julia fechou os olhos e parou de andar. "Me desculpa..." Ela disse, suspirando fundo. Depois olhou para frente, com o olhar apertado, e continuou a caminhada, com passos lentos. "Eu estou tão confusa... Eu quero estar ao seu lado. A minha vida tem feito cada vez menos sentido sem você. Para que viver? Às vezes eu penso..." Ela não conseguiu terminar, sua mandíbula tremia, mas ela não conseguia soltar nenhuma palavra. Emaré, que ficara a caminhada inteira olhando para frente, se virou, ao mesmo tempo curioso e preocupado com ela. "Às vezes eu penso em por um fim. Sabe? Acabar com tudo. Você é a única coisa que me solta das correntes que me prendem o tempo inteiro. As pessoas sempre exigindo de mim coisas que nem eu quero para mim mesma. Você é livre. Meu contato com você é a única coisa que me faz ver que a vida é muito mais do que as coisas que me cercam. Eu queria vir morar com você..." Emaré parou de andar. Ficou olhando para Julia com expectativa. "Por que não vem, então? Minha casa não tem espaço, mas nós podemos dar um jeito". Ela respirou fundo. "Não é bem assim... Como eu disse, existem essas correntes que me prendem. Minha família, minha casa, minha reputação, minha fé... É tão difícil escolher. Se eu considerasse só meus sentimentos, eu viria de prontidão. Mas existem tantas coisas em jogo... Acho que terminar a minha vida seria a melhor escolha para acabar com todo o meu sofrimento e com meus impasses."

Emaré acariciou o seu rosto. Julia olhou no fundo de seus olhos, suas olheiras intensificando sua expressão esperançosa. "Não pense assim. A gente pode tentar de novo, nunca é tarde demais".

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Cortar o Tempo


Uma releitura de Carlos Drummond de Andrade

Cortar o Tempo

    Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias
    A que se deu o nome de ano
    Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos
    Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez
    Com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente

    Pena que tudo acaba sendo a mesma coisa
    E cada ilusão de renovação é perdida à medida que os erros se repetem
    Outro ano perdido, e tem a impressão de estar vivendo sempre o mesmo
    Mesmo assim, quando chega o fim da vida, foram setenta anos fazendo as mesmas coisas
    E ainda temos a impressão de que não aproveitamos nada do que fizemos setenta vezes



segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Ela e Ele

Ela e Ele

E ela tinha um segredo. Um segredo que não queria que ninguém soubesse.
E ela não contava para ninguém porque tinha vergonha.
Mas ele! O problema dela era a virtude dele!
Ele acolhia e abonava aquilo que ela recusava e se deslustrava.
E ela o censurava pela forma como ele lidava com aquilo.
E eles brigavam um com o outro pelo conflito de ideias.
E ela o amava. E ele a abominava.

Como pode? Amar algo que se odeia?
Como ele podia amar um defeito que o difamava?
Como ela podia amar alguém que era o que ela odiava?
Mas ela não sabia o que disse Okatsura Lau:
Que gostamos das pessoas pelas suas qualidades.
Mas que as amamos por seus defeitos.

E ela estava indigesta por suas emoções.
Indigesta porque não as entendia.
E indigesta porque cada vez que ela o via, ou pensava nele, ou sentia algum odor que a recordava do dele, sentia seu coração dentro de seu estômago.

E ela estava acomodada a ignorá-lo.
Até o dia que ele foi irônico com ela.
Que ele soube o segredo dela, mas foi indireto ao demonstrar que descobriu.
E afinal, ela não teve nem certeza da ciência dele.

E ela ficou perdida.
Os planos dela se perderam e ela não conseguiu mais ignorá-lo.
E tudo o que ela teria feito, foi embaralhado.
Embaralhado pela ansiedade de saber que ele soube, mas não saber o que ele faria.
E se ele soube, por que não falou nada para ninguém?
Por que ele manteve o segredo dela, se o mesmo defeito, dele, não é segredo?
Será que ele realmente soube?

E o mundo dela girou.
E girou.
E girou.

E o que uma vez foi grande para ela, deixou de ser.
Deixou de ser depois que ele descobriu o segredo dela.
Porque ela não conseguia mais se concentrar em pensar em seus sonhos.
Porque sempre pensava nele.
E se questionava a respeito dele.
E sofria por causa dele.

E o tempo passou.
E eles se tornaram adultos.
E cada um seguiu seu rumo.
Mas ela sempre o admirou.

E depois de muito tempo, já velhos, se reencontraram.
E ela perguntou se ele sempre soube de seu segredo.
E ele respondeu que sim.
E ela perguntou se ele também gostava dela.
E ele respondeu que sim.
E ela perguntou por que ele nunca revelou a ninguém.
E por que ele nunca se confessou a ela.
E ele respondeu que não quis espalhar o segredo dela.
E que ele não quis que ela se desgostasse de si mesma por estar com ele.
E que ele achava deplorável alguém ter vergonha de viver.


sábado, 30 de julho de 2011

Brincandeira de Casinha


Laura, a irmã mais nova, se entretinha com Lego. Ela gostava de montar casas e pôr bonecos dentro, para fazer de conta que fossem uma família. Sua irmã mais velha, Bruna, a olhava ao mesmo tempo em que fazia os deveres da faculdade.

Certo dia, Laura montou uma casa não muito grande e bem colorida, porque ela tinha preguiça de procurar por peças da mesma cor. Ela admitiu lacunas onde deveriam ser a porta e as duas janelas. Usou peças pequenas para simular os móveis. Não montou um teto, pois seria trabalhoso demais. Por vaidade, ela quis mudar as cores das peças que formavam o corpo dos bonecos. Seus dedos acabaram ficando doloridos por ter de usar tanta força ao desmontá-las.

A família fictícia dela era composta por um pai, uma mãe e duas filhas. O pai trabalhava no lixão, que na verdade era o amontoado de peças que não estavam sendo usadas. As duas filhas estudavam na escola, atrás da cama, e a mãe era dona de casa.

A boneca mãe estava fazendo o almoço quando o marido chegou. “Chegou cedo hoje, querido”, ela disse. Então ele respondeu “Quero ficar mais tempo com a minha família”.  “E as meninas, vão vir pra casa como?”, ela indagou. “O ônibus escolar vai trazer elas”. Então as duas meninas entraram pela porta dizendo “Já estamos aqui, mamãe”.

Laura parou com a encenação. Ela estava com dificuldade em colocar a última garota dentro da casa. Não havia espaço suficiente.

-Droga! Ela gritou.
-Que foi? Perguntou Bruna, cessando o dever de casa por alguns instantes.
-Ela não tá entrando!
-Como assim, Laura? Me explica, pra eu ver se posso te ajudar. Bruna se levantou da escrivaninha para ver a brincadeira da irmã.
-Olha só! A menina não tá entrando dentro da casa!
-Não tem espaço para todos os bonecos, Laura. Você não vai conseguir colocar todos ao mesmo tempo.
-Essa casa é uma droga! Essa menina tá me irritando!

Laura começou a gritar, e chutou a casinha na parede, fazendo com que várias peças se soltassem. Depois fez bico e cruzou os braços. Ela odiava quando a família dela não ficava do jeito que ela queria.

-Calma. Não precisa fazer isso. Você pode continuar brincando.
-Eu não quero mais! Não tá do jeito que eu quero!

Então Laura pegou a casinha e desmontou-a inteira, arrancando todas as peças e jogando-as longe. Bruna balançou a cabeça em negação. Sua irmã mais nova era inacreditavelmente impaciente e controladora. Ou, como dizem, mimada.

-Laura... Não adianta você ficar brava com seus brinquedos. Os bonecos não se rebelaram contra você. Não foram eles que rejeitaram entrar na sua casinha. Foi você que montou tudo do jeito que estava. Para com esse escândalo e aceita as coisas do jeito que elas ficaram. Fico imaginando o dia que você estiver adulta e com uma família de verdade.


sexta-feira, 24 de junho de 2011

A Cor do Tempo



Ela levantou da cama com o cabelo bagunçado e pôs as pantufas de coelhinho. Foi até o banheiro, lavou o rosto, prendeu o cabelo. Foi até a sala, abriu a porta de entrada, pegou o jornal do tapete. Voltou para dentro, fechou a porta, pôs o jornal sobre a poltrona. Foi até a cozinha, preparou um expresso, voltou para a sala. Colocou os óculos, sentou na poltrona e começou a ler enquanto bebia o café quente.

“Vítima de assassinato é encontrada em beco da cidade” “Carregamento de drogas é descoberto por policiais à paisana” “Estelionatário é levado a julgamento” “Dólar atinge menor valor desde o início do ano” “Prefeitura inicia construção de escola local” “Taxa de desemprego da cidade vem subindo desde os últimos cinco anos” “Veja os lugares que valem a pena ser visitados antes do término das férias” “Astrólogos dizem que próximo semestre será escasso nas finanças, mas rico em romances” “Dicas de receitas para as frutas da estação”

–Nada interessante.

Ela levantou-se, pôs o jornal sobre a cômoda, deu mais um gole no café. Pegou o controle remoto, sentou-se novamente, ligou a televisão. Passou de canal em canal procurando algo que chamasse atenção, mas no fundo estava desinteressada em qualquer programação. Percebeu que a TV ainda estava em preto e branco.

–Merda! Quando vão chamar o técnico?!

Desligou. Deu passos até a sacada, rastejante, como se fosse uma morta-viva. Foi até o cavalete. Havia um quadro com um esboço feito a carvão. Procurou os pincéis e as tintas, mas lembrou que ele os tinha levado. Olhou através da rede de proteção. Nuvens cinzentas tomavam conta do céu. Um cheiro de molhado vinha junto com a brisa que balançava os seus fios de cabelo soltos.

–Como é horrível esperar! Por que você faz isso comigo? Bem em uma época que eu não tenho nada com o que me ocupar?

Ela sentiu frio. Voltou para o quarto, pôs uma blusinha sobre a camisola, voltou para a janela. Observou o céu, observou os prédios, observou o movimento das ruas. Cruzou os braços, descruzou os braços, ficou batendo com os dedos no parapeito. Apoiou os cotovelos na janela, cuspiu para ver em que direção estava o vento, endireitou o corpo. Mordeu uma mexa de cabelo solta, coçou o peito de um pé com o outro, ficou cutucando as unhas para tirar o esmalte. Voltou para a cozinha, pôs a caneca na pia, olhou o mural.

Entre vários bilhetes, cartões de visita e números de telefone, havia fotos. Algumas dela, algumas dele, várias dos dois. Ela sorriu. Passou o dedo numa foto em que se abraçavam, por cima do rosto dele, como se fizesse carinho. Mordeu os lábios, cruzou as pernas, abraçou a si mesma. Balançava o corpo de um lado para outro enquanto via as fotos, cheias de nostalgia, cheia de saudade.

–Deus! Quando você vai chegar? Por que eu não consigo ficar sem você?

Saudades. Saudades. Saudades.

–Mal consigo esperar a sua volta. Sem você, as coisas são tão sem graça, iguais, rotineiras, sem cor. Você é quem colore a minha vida.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Devorar


Releitura de uma música de Marilyn Manson

Devorar

Eu vou te tomar como
Se você fosse um grande gole de veneno
Eu sei que nunca deveria ter te colocado em minha boca
Mas agora te engolir é a única forma de descansar
Sua validade está terminando
E eu não estou tendo mais dores de cabeça

Eu sei que você está tentando me impressionar
Porque isso não são suas lágrimas, é o meu sangue

Eu vou te amar, se você não me esquecer
Eu vou te amar, se eu não for só mais um para você

Eu sentia os batimentos do seu coração
Sei que vou sentir saudades disso se fechar meus olhos
Mas mesmo quando abertos te vejo por toda a parte
E quando realmente for você, não vou conseguir me conter
Eu sinto que vou explodir seu coração em pedaços

Eu vou te amar, se você não me esquecer
Eu vou te amar, se eu não for só mais um para você

Minha dor não é vergonha
Eu passaria por tudo de novo
Te engolir é a única forma de descansar

terça-feira, 17 de maio de 2011

Vida Vinda da Tinta


Eis que Frans nasceu sem chorar. Ele foi um bebê que não sorria, nem chorava. Ele olhava o mundo a cada dia como se tivesse acabado de nascer. Ele era praticamente mudo, raramente chorava ou gargalhava. Ele demorou um ano para dizer a primeira palavra e quase dezoito meses para aprender a andar. Ele tinha medo do que era novo. Gostava de aprender, mas não se sentia bem fazendo aquilo que nunca tinha feito antes.

Ele nunca aprendeu a andar de bicicleta. Ele andava por aí a pé, sem ciência de onde ia, sem saber aonde seus pés o levavam. Ele observava o mundo como um telespectador de televisão, não ousava participar dele. Ele assistia às pessoas brincando no parque, nadando na piscina, rindo, se socializando, mas não tinha coragem de ter uma atitude e contemplar com a pele aquilo que contemplava com os olhos. Ele sempre estava vagando, sem rumo, só observando, sem participar de nada.

Ele não apreciava música. A melhor música, para ele, era o som dos carros, as vozes das pessoas, as buzinas, os sinos da igreja, os pássaros cantando, o martelar de uma construção, e principalmente o vento, que vaga pelo céu, que já passou por todas as partes do mundo, já levou muita poeira de um lugar para o outro, mas que ninguém dá a mínima importância.

Frans gostava de pinturas. Ele via a vida como vinda da tinta, e não do pó. Ele via dentro dos quadros toda a loucura e o sofrimento vivido pelos indivíduos que dizem às telas “que haja luz”. Ele via Os Corvos de Van Gogh batendo asas sobre os campos, todos vindo em sua direção, para buscá-lo. Ele via todo o movimento dos corpos ilustrados por da Vinci, como se todas as pessoas retratadas por ele escondessem de quem as observasse, algum segredo. Ele sentia toda a conformidade de Adão por não estar em contato com Deus, em todo o niilismo expresso por Michelangelo.

Ele começou seu apreço por literatura assistindo a filmes. Mas no fundo, ele não gostava: não os achava profundos o suficiente. Então lhe voltou à mente que a vida era vinda da tinta. Nisso começou seu deleite pela literatura impressa. Deliciava-se com os livros, como se eles lhe trouxessem a vida que ele não tinha. Cada letra, cada palavra, cada ponto no texto, era um suspiro, um olhar, um passo dentro do mundo próprio que ele criava em sua mente. E isso lhe era suficiente, uma troca de situações. No mundo real ele se preenchia com as histórias dos livros, e em suas emoções ele vagava por aqui e por ali sem sentido.

Ele nunca chegou a ter um amor. Ele não falava com as pessoas que lhe chamavam atenção. Ele tinha medo de que, ao ficar frente a frente com alguém que ele gostasse, as palavras enroscassem em sua garganta e nada saísse de sua boca. Ou então, se ele conseguisse falar com a pessoa e essa pessoa gostasse dele, ele temia por parar de gostar dela. Tudo que ele não tinha certeza em sua vida, ele descartava. E, como na vida nada é certo, ele não fazia nada, além de ficar vagando pela terra, observando as pessoas, seu comportamento e as coisas que elas inventam.

Eis que, em um gélido inverno, Frans pegou uma gripe, que evoluiu para uma pneumonia, e ele acabou sendo internado em um hospital. Na vida, nada é certo além da morte. Como ele não tinha família, foi enterrado como indigente.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

1 Ano

Pois é, já faz algum tempo que eu não escrevo nada... Tenho passado por momentos de pouca inspiração. Acho que não consigo mais escrever textos extremamente depressivos. Na minha vida mesmo tenho passado por essa mudança: Estou entrando em um momento menos "que vida sofrida" e mais "foda-se".

Dia 5, o Antiquado fez um ano de inauguração. Não tive tempo para postar nada no dia, mas hoje quero fazer alguns comentários sobre os textos que mais marcaram nesse último ano, dos mais antigos para os mais recentes:

A História de Fred.
Foi o meu primeiro post. No início do blog, eu não queria postar os meus textos mais depressivos, por isso escrevi esse. O meu objetivo ao escrever "A História de Fred." Era fazer jus ao título do blog, Antiquado, fazendo uso de um roteiro que expressa sentimentos de desagrado, assim como a imagem. Eu sempre quis escrever textos que incomodam as pessoas que leem. O título possui o ponto final para demonstrar que é a história de um fim.

Nem por um Momento
Sem dúvidas, um dos textos mais lindos que eu já escrevi. Uma amiga minha perguntou para mim se era verdade, e ficou espantada quando eu neguei, pois ela disse que quase chorou ao lê-lo. Eu não esperava causar esse tipo de sentimento nos leitores quando o fiz, eu só queria escrever algo relacionado a uma imagem de um girassol, que afinal de contas não cheguei a usar para ilustrar esse texto:

Você Deu Errado
Esse é o meu texto de maior sucesso, é o mais lido de todos eles. Escrevi ele enquanto ouvia "Bad Romance", embora eu não goste muito de Lady Gaga. Ele é um dos meus três textos mais expressivos, ao lado de Simbolismo Negro e Você é o Culpado.

O Príncipe na Armadura Reluzente
Outro texto que eu gosto muito. Comentei sobre ele em um texto que escrevi mais tarde, Uma Palavra. Para criar seu enredo, levei em consideração várias coisas. São elas: Uma situação de rejeição que eu passei; As reclamações que uma amiga fez do namorado; E o fato de eu discordar do sentimento de alegria incondicional da música "Cannon" de Pachelbel.

Luzes
Esse texto é mais antigo que o blog. Retrata mais ou menos a cena de um filme que eu não assisti, que eu só vi quando estava passando pelo corredor e olhei para a TV por alguns segundos, mas que acabou ficando muito legal.

Amoras Secas
Escrevi "Amoras Secas" com base em uma discussão que tive com um amigo, que dizia que ia achar uma esposa loira e linda que pintaria as unhas de vermelho, mas que se casaria com ela virgem. Aí eu narrei essa história dizendo que aconteceria com ele, e mais tarde eu reescrevi inspirado no filme "17 Outra Vez" e postei no blog.

O Lugar Onde a Felicidade Existe
Outro texto que eu tive inúmeras inspirações: A Música "Fireflies" de Owl City, Uma dríade que aparece em algum filme das Crônicas de Nárnia, a região do Ancient Temple do Zelda Twilight Princess, e uma cena que eu vi na TV, da novela "A Favorita", que tinha um menininho que via o pai batendo na mãe.

As Duas Faces do Amor Incondicional
A primeira imagem do meu blog. Eu tive trabalho para criar as três contas do msn e conseguir as fotos, eu não queria mostrar rostos, mas também queria que parecessem de pessoas reais. Foi inspirado mais ou menos uma premonição minha de algo que quase aconteceu.

Se Eu Não Preciso Pagar para Ter o Mundo
Como foi dito no post, foi inspirado em três coisas, em uma viagem que eu fiz ao Rio de Janeiro, em um texto de uma amiga minha, e em uma conversa com um amigo. É o segundo texto que eu posto que não passa nenhum sentimento realmente ruim: Dom foi o primeiro.

Sem Título
Escrevi-o em um momento de crise. Eu estava me sentindo realmente mal e queria expressar isso. Não foi inspirado em nenhuma música, em nenhum filme, em nada fora os meus sentimentos em um dos piores momentos da minha vida. Eu mesmo não gosto de lê-lo, me traz péssimas lembranças. A única vez que eu o li completamente foi quando o escrevi.

Luta pela Vida
Uma imagem que foi feita totalmente por mim, desde aedição da foto, até a destruição do muro e a pichação (Brincadeira). Não vou dizer que ela tem um sentido, que eu quis passar um sentimento. Como qualquer outra fotografia, serve para quem a vê pensar nos infinitos significados que ela pode ter.

Lembrança
Inspirado nos textos do blog de um amigo. Esse texto serve como continuação de outro, Autopsicometeorologia. Eu não diria bem uma continuação, uma vez que só se retrata de uma descrição dos pensamentos do personagem depois dos fatos ocorridos no texto anterior. Eles não são dependentes, você pode ler qualquer um quando quiser, sem ter lido o outro, e isso não vai fazer absolutamente diferença nenhuma no seu entendimento.

Essa foi a minha descrição básica dos textos principais que eu escrevi e postei no Antiquado desde o dia 5 de Maio de 2010. Espero que vocês gostem e continuem lendo meus textos.

Caso queira procurar textos que eu não comentei aqui, sobre algum tema específico, basta selecioná-lo na nuvem de tags, do lado direito da página do blog, sob o histórico. Eu separei os textos por tema minuciosamente para facilitar quando qualquer leitor estiver com vontade de ler algo em específico.



Atenciosamente,



terça-feira, 12 de abril de 2011

Você é o Culpado

A culpa é sua. A culpa é toda sua. Eu rejeito a minha culpa e a coloco em você. E vou te punir. Você não merece nada. Você não tem capacidade para nada. Vou rejeitar todas as suas ideias e questionamentos e vou impor as minhas. E vou te considerar inferior e incapacitado por pensar diferente de mim. Você sabe o que discordar de mim e me questionar significa? Vou te considerar sem mentalidade, influenciável, sem maturidade. Vou te considerar incapacitado. Porque se você discorda de mim você não tem capacidade para fazer nada direito.

Eu invento um livre arbítrio que não existe para te culpar. Vou falar que tudo o que eu te fiz, na verdade foi escolha sua. Desde que você nasceu eu vejo que você não tem atitude para nada, que você não pensa por si próprio, que você não sabe fazer escolhas. E vou ficar repetindo isso até você aceitar, porque eu quero que você pense igual a mim. E depois, todas as consequências que isso acarretar, vou dizer que foram escolhas suas. Eu quero te moldar. Eu quero te forçar a ser algo que você não é. Quero que você aceite como verdade o que eu aceito como verdade, eu quero que você seja igual a mim, eu quero que você faça parte de mim. Mas não quero pensar nas conseqüências que isso acarreta na sua personalidade. Vou falar que tudo foi escolha sua, e que minhas punições são consequências delas.

Vou excluir toda a realidade. Vou fechar minha mente. Vou aceitar como verdade absoluta algo que nem sempre é verdadeiro, e vou aceitar ser influenciada por aqueles que demonstram mais poder. Vou dizer que o meu caminho é a luz e que todo o resto é lixo e não presta. Qualquer pessoa, para prestar, tem que pensar igual a mim. Por isso que você não presta, e eu vou te punir por isso.

Por quê? Por quê? O culpado de tudo isso é você. Você que não quis ser igual a mim. Você que quis ser burro, e me questionar, e discordar de mim. Você não pensa. Você não tem atitude. Você não sabe escolher. Você é o culpado. Você é o culpado. Você é o culpado. Você é o culpado.

Não adianta o que você disser, eu vou repetir isso inúmeras vezes. Vou repetir até os seus ouvidos sangrarem e você ficar surdo, ouvindo somente a minha repetitiva voz: Você é o culpado. Você é o culpado. Você é o culpado. Você devia pensar igual a mim. Você devia ser igual a mim. Você devia ser minha continuação. Eu te criei para que você fizesse parte de mim. Por que você tem que pensar diferente? Por quê? Você é o culpado. Você é o culpado. Você é o culpado. E ai de você se você colocar essa culpa em mim. Aí eu vou te odiar. Vou te odiar muito. Vou brigar com você o tempo inteiro. Vou sempre te jogar na cara. Porque você pensa diferente de mim, e por isso eu te considero inferior, burro, sem mentalidade, sem maturidade. Por que você quis pensar diferente? Agora você é o culpado por isso. Você é o culpado. Você é o culpado.

Você é o culpado. Toda a culpa é sua. Eu te culpo. Eu te acuso. Você errou. Você sempre erra. Toda a culpa é sua. Você é o culpado. Você é o culpado. Você é o culpado. Eu te culpo. Você está errado. Você é errado. Eu te acuso. Eu te culpo. Você deu errado. Não era para você ser assim. Você está errado. Você é o culpado. Você é o culpado. Você é o culpado.



Desculpe-me, Aci. Desculpe-me. Você não sabe como eu me arrependo. Arrependo-me de pensar diferente de você. Arrependo-me de ser quem sou. Arrependo-me de respirar.

Eu não queria ter nascido. Eu queria ter sido abortado. Desculpe-me, Aci. Desculpe-me.

Eu sou tão problemático... Por que não aceito pensar como você? Porque não discarto minhas ideias, meus questionamentos, minha vida... Para viver o que você quer que eu viva? Eu queria, muito, muito, ser o seu complemento. Fazer parte de você. Eu queria que minhas escolhas fossem as suas escolhas. Eu não queria pensar, eu queria que você pensasse por mim. Assim eu ficaria em paz. Assim eu te deixaria em paz. Mas não consigo. Não consigo viver assim.

Desculpe-me.

Eu sou o culpado por tudo isso. Eu sou o culpado. Eu sou o culpado. Por que você não me pune de uma vez? Por que você me tortura tanto? Por que fica jogando na minha cara todos os meus erros e falhas?

Por que você não me pune de uma vez? Não vou fugir, não vou discordar, não vou pedir socorro. Eu vou deixar que você me puna. Eu quero que você me puna. Eu quero que você me bata, me esmurre, me ataque. Eu quero que você bata em mim com a vara, eu quero que você me derrube no chão. Eu quero que você pule em cima de mim, eu quero que você pule em cima de minhas costelas. Eu quero que você quebre minhas costelas, e assim eu ficarei sem ar, e não poderei mais te questionar. Eu quero que você me suje, eu quero que você me faça sangrar. Eu quero que você pise em mim, eu quero que você pise no meu pescoço. Eu quero que você me humilhe, eu quero que você me faça sofrer. Eu quero que você me puna. Alivie-se em mim, eu sou o culpado. Eu sou o culpado. Eu sou o culpado.

Eu não mereço nada. Eu não mereço o seu amor, eu não mereço o seu carinho, eu não mereço a sua paciência. Eu não mereço nada. Eu destruo tudo, eu acabo com tudo. Eu sou ingrato, não dou valor a nada. Acabe com tudo isso de uma vez. Pare de me torturar emocionalmente. Quantas vezes eu vou ter que pedir para que me puna? Eu quero ser punido. Eu quero sentir dor. Eu sou o culpado. Eu sou o culpado. Eu quero ser punido. Eu quero sentir dor. Assim serei liberto dessa tortura infernal.

Desculpe-me, Aci. Desculpe-me.

Eu sou o culpado. Toda a culpa é minha. Eu me culpo. Eu me acuso. Eu errei. Eu sempre erro. Toda a culpa é minha. Eu sou o culpado. Eu sou o culpado. Eu sou o culpado. Eu me culpo. Eu estou errado. Eu sou errado. Eu me acuso. Eu me culpo. Eu dei errado. Não era para eu ser assim. Eu estou errado. Eu sou o culpado. Eu sou o culpado. Eu sou o culpado.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Lembrança


 Incrível como você sempre teve a habilidade de me fazer chorar. Essa noite eu sonhei com você. Você finalmente me visitava, na minha casa. Promessa que você nunca chegou a cumprir. Quando te vi, me senti angustiado, embora você estivesse aparentemente bem. Acho que é pelo fato de termos brigado antes de você ir embora. Sempre te amei muito, embora não conseguisse conviver com você. E isso me fazia sofrer demais... Amar-te tanto assim e não conseguir me dar bem com você. E quando te vi na minha casa chorei muito e tentei me esconder.

Eu te admiro tanto... Eu queria ser igual ao que você foi. Eu queria que você tivesse me admirado o quanto eu te admirei. Eu queria que você não tivesse partido.

Resolvi enfrentar meu medo de falar com você. Levantei-me, saí de meu esconderijo e me apresentei. Você estava ainda mais linda, cativante e inteligente. Incrível como você sempre se superava cada vez que fazia algo. Só não consigo entender por que você teve que ir embora... Mas enfim, eu sempre te admirei muito, como se eu não fosse bom o suficiente para te merecer.

Começamos a conversar, e logo já estávamos nos dando bem. Eu adorava quando nossos momentos juntos eram assim: Simples, sem acusações, sem discutirmos sobre nosso relacionamento... Somente falando sobre as coisas simples da vida. Levei-te para ver meus desenhos, para que você também se orgulhasse de mim. Quando você ainda estava ao meu lado, eu me sentia completo. Receber os seus elogios era o que mais me fazia sentir bem.

Aí seus pais te chamaram. Chegou a hora de você ir embora. Eu queria que você ficasse, pedi para que passasse a noite comigo. Eu queria te ter para mim. Não poderia aceitar perder-te de novo. Mas você foi. Eu acordei com o rosto molhado. E a única coisa que eu sentia era saudades de você.

Você ainda continua aqui dentro, você ainda existe em mim. Você ainda aparece nos meus sonhos, nas minhas lembranças, você faz parte da minha personalidade, do meu ser. Você é tão especial para mim, que, nos meus sentimentos, você não se foi. As memórias que você me deixou são meu tesouro, e eu jamais abrirei mão delas.

E a única coisa que eu sinto é saudades de você.


Esse texto foi concebido como continuação do texto Autopsicometeorologia, e inspirado no texto "Sétima Lembrança" de um colega de blog.

sábado, 5 de março de 2011

A Minha Droga



Eu grito “Porra!”. Ou melhor, eu não grito, eu só penso em gritar, por que nos últimos meses eu tenho me tornado cada vez menos expressiva. Eu penso rápido, mas meu corpo demora a obedecer aos meus pensamentos. E às vezes ele nem obedece, minhas atitudes ficam só na minha mente.

Como agora. Perdi o trem por muito pouco. “Porra!” Agora vou ter que esperar 15 minutos para pegar o próximo. E o pior de tudo não é porque eu vou ter que esperar. Mas sim porque a frustração de eu ter perdido o trem me fez pensar em usar droga de novo. A cada mês que passa, eu tenho tido mais vontade de usar, cada vez em situações mais comuns. Meu cérebro está sendo intoxicado, não consigo me livrar desses pensamentos.

Isso é terrível. Eu me tornei uma pessoa diferente depois que eu fiquei dependente. Perdi meus amigos. Eles têm me achado estranha demais. Eu nunca estou sintonizada com nada, porque não gosto mais das mesmas coisas que eles. Não vejo mais graça em assistir um filme, comer um lanche ou ficar fazendo piadas. A única coisa que eu consigo me interessar é pela a droga. Outros assuntos não prendem minha atenção e eu começo a viajar dentro da minha própria mente, pensando na droga.  Eu não me relaciono com eles nem eles comigo.

Eu destruí meu relacionamento com a minha família. Como sempre se é de esperar, eles odeiam que eu use droga. Mas ao invés de tentar me ajudar, eles só me ameaçam. Falam que se eu continuar fazendo as coisas que eu faço, eles vão me foder. Eles não procuram ajuda para mim. Só ficam me ameaçando e falando coisas que não me interessam. E depois que eu fiquei dependente, prestar atenção nas coisas tem sido difícil para mim. O clima dentro da minha casa tem sido só de brigas.

Eu tenho um namorado. Algumas vezes, quando estamos juntos, eu me sinto satisfeita e livre. Isso é ótimo. Mas não dura para sempre. Minha vontade de usar acaba voltando. No início, eu tento resistir. Mas quanto mais eu resisto, pior eu me sinto. Vou ficando triste, muito triste, como se nada na minha vida tivesse sentido. Todos os erros que eu cometi e todos os meus problemas voltam à tona em minha cabeça e parecem insolúveis. Parece que minha vida nunca vai ser normal e que a única coisa que eu posso fazer para me sentir bem é usar a droga. Meu corpo inteiro começa a se retorcer para que eu use de novo. Começo a perder a noção do tempo, tudo o que eu vivi parece não ter sido nada, e cada segundo que estou vivendo parece demorar um milênio, enquanto eu não uso a droga. Minha vida então não tem mais valor algum. Eu não quero mais ter saúde, eu não quero mais ter amigos, eu não quero mais a minha família. Eu só quero a minha droga. Eu só quero a minha droga. Se eu não a consigo, eu começo a desejar a morte. Porque morrer é melhor do que viver sem razão. A única razão para eu viver é poder usar a droga de novo. Se eu não pudesse usar a droga de novo, eu me mataria.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Saúde



Nós vamos viajar juntos, nós vamos ver o mundo, deitar e sonhar felizes, sentir o cheiro da garoa e da areia e das plantações. Perceber só na tarde do dia seguinte todo o tempo que ficamos um com o outro, depois de uma noite de luzes apagadas, traçando nossos planos para o futuro, conversando, tocando, agarrando, sentindo. Não sei mais se minha lucidez está indo embora, por outro lado, a mais crua e dura realidade. Não creio que plumas estejam saindo em seus ombros, você não é real, a realidade me engana. Minhas vísceras ‘tão saltando pra fora de mim. Eu tento não acreditar em demônios, mas esses vultos crescem cada vez mais, cada vez mais entre as pessoas próximas, que pulam e festejam a minha volta sem que eu possa ouvir uma única voz. Muito longe, todos longe demais. Como pôde a sua luz virar sombra? Tornar seus caminhos em labirintos? O seu lugar, num espaço vazio, oco, como um câncer me devorando?

Nós vamos ver as nuvens, nós vamos ver estrelas, deitar e sonhar juntos, sentir o cheiro do café e do tabaco e da erva. Perceber só na tarde do dia seguinte o círculo marrom carimbado no papel, depois de uma noite de luzes acesas, traçando trilhas no meio da bagunça, compartilhando, conversando, viajando. Preciso de uma fuga dessa sala escura. Se a luz não me mostrar um caminho a seguir, que a fumaça me cegue de ver esse vão. Se esse vazio não sumir de mim, vou morrer. Mesmo se não me matarem, eu vou morrer.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Trovões


Trovões. Estou ouvindo trovões. Isso não é bom. No verão, isso significa que daqui a pouco vai chover.

Eu tenho que voltar para casa antes que comece a chuva. Mas ainda estou aqui, no posto de saúde, esperando a enfermeira pegar o antiinflamatório que o médico me passou.

Por que antiinflamatório? Por um ato de irresponsabilidade, eu acabei fazendo um machucado na parte alta da perna. Como foi muita irresponsabilidade, eu não quis que meus pais ficassem sabendo, se não eles brigariam comigo. Foi um corte mais ou menos profundo, sangrou muito, mas passou. Isso aconteceu há dois dias. Hoje, quando acordei, estava começando a formar pus. Conversei com uma amiga por MSN, e ela disse que era melhor eu ir num médico.

Eu não pediria para meus pais me levarem. Se eles ficassem sabendo do meu machucado, eles iriam brigar comigo. Resolvi falar para minha mãe que eu iria andar de bicicleta. Mas na verdade eu fui ao posto de saúde.

Foi complicado dar uma desculpa para o médico. O lugar era meio incomum para um machucado corriqueiro. Acabei inventando uma estória envolvendo uma namorada que eu nunca tive em um sexo muito louco no meio da floresta. O médico ficou espantado, ele falava o tempo inteiro “puxa, mas que estranho ein?”.

Ao menos, não foi a médica que me atendeu. Ela fez a minha ficha. Ela era muito rabugenta. Quando pediu meu R.G. e eu falei que não tinha ele comigo, ela disse “Como você vem num posto de saúde e não traz documentos?” em um tom seco. Ainda bem que ela me passou para outro médico.

Ele passou um remédio no local e fez um curativo. Ele disse que se eu tivesse ido lá antes, poderia ter suturado e a cicatrização seria mais rápida. E que se o corte tivesse sido um pouco mais profundo, teria pegado uma artéria e eu correria o risco de ter uma hemorragia. E aí ele me receitou um antiinflamatório. Agora eu estava na farmácia do posto, esperando para que a enfermeira pegasse o remédio. E comecei a ouvir trovões. Logo choveria, e eu ainda estava “dando uma volta de bike”. Meus pais ficariam preocupados.

Ela demorou, mas chegou com o meu remédio. Eu agradeci e fui embora. Quando pisei do lado de fora do posto, meu celular tocou. Já era minha mãe preocupada. “Onde você está? Está caindo raios, vem logo para casa!” Ela gritava. Eu desliguei o celular e comecei a correr. Não sei se foi bom, porque minha perna estava machucada, mas eu estava muito mais longe do que eu normalmente vou quando saio para andar de bicicleta.

Pedalei muito. Percebi que finas gotas de água começaram a cair do céu. E eu ainda estava longe de casa. Eu corria cada vez mais. Os trovões eram cada vez mais altos, e os relâmpagos, mais fortes. As gotas de água foram ficando maiores. Estavam me molhando cada vez mais. Poças estavam se formando dos lados da rua. E eu estava ficando molhado.

Acabei me cansando, tive que reduzir a velocidade. Estava ofegante. E totalmente molhado. A chuva estava caindo muito forte. Senti minha perna se molhando, mas não de água, e sim de sangue. E meu celular tocou. “Onde você está? Olha só os raios que estão caindo! Vê se não demora!” Voltei a pedalar em alta velocidade. A minha camisa grudou no meu peito e na minha barriga, não havia um milímetro do meu corpo que não estivesse molhado. Reparei nas gotas de água que ricocheteavam ao caírem no chão. As poças de água que enchiam cada vez mais.

Logo me cansei de novo. Mas já estava na minha rua. Fui pedalando devagar até chegar em frente ao portão de casa. Tentei abri-lo. Mas a faxineira tinha trancado, e ninguém me ouviria do lado de fora. Era melhor se eu entrasse pelos fundos do que se ligasse do celular para a minha mãe vir me atender.

Entrei em casa, e mal falei com minha mãe, fui para o banho. Tirei o papel da receita e o remédio do bolso, escondi na gaveta, e liguei o chuveiro. Não há nada mais calmante do que água morna caindo sobre o nosso corpo, quando estamos exaustos e encharcados. Tirei a roupa depois que já tinha aberto o chuveiro. Ela já estava toda molhada mesmo. Ao menos eu estava tratando do meu ferimento agora. E meus pais não se preocupariam nem brigariam comigo. Fiquei relaxado de baixo do chuveiro. Muito relaxado.