sábado, 8 de outubro de 2011

Sempre Há Tempo

Ele levantou os trapos que o cobriam e se levantou da cama. Sua roupa larga estava começando a ficar suja, ele não a removia nunca. Deu alguns passos preguiçosos, tomando cuidado para não tropeçar com seus pés descalços. Pegou uma jarra na despensa, a destampou, colocou um pouco de água em uma caneca de madeira e bebeu. Tentou erguer sua postura corcunda espreguiçando e coçando a cabeça, enquanto olhava para a floresta pela janela. Tudo estava calmo e deprimente, como sempre esteve em sua vida solitária. Alguns pássaros voavam e o vento balançava as árvores. Tudo em seu lugar, exceto por aquela mancha azul, bem distante, se aproximando aos poucos. Ele esfregou os olhos. Estava com preguiça de acreditar no que vira. Não queria passar por tudo de novo. Voltou para a cama, e quis acreditar que dormia.

"Ré, eu sei que você está aí!" ela gritava enquanto dava murros na porta, "Me deixa entrar!". Ele só se virou na cama e tentou cobrir a cabeça com o cobertor. Ela, sem obter resposta, começou a chutar a porta. Emaré, ao ouvir o som de madeira estralando e com medo da porta ceder, se levantou. "Se você não abrir para mim, eu vou derru..." Ela dizia, antes dele silenciosamente aparecer na sua frente, com a porta já aberta. Suas olheiras profundas e seu cabelo desarrumado só intensificavam sua expressão de desgosto.

"Boa tarde", ele disse friamente. "Boa tarde", ela respondeu sem jeito, seu rosto corando. Eles ficaram se encarando na passagem da porta da casa por algum tempo. "O que você veio fazer aqui?" Ele quebrou o silêncio. "É que eu quero conversar..." Ela disse, timidamente. Ele ergueu uma sobrancelha, descontento com a resposta. "Não é tarde demais para a gente tentar de novo" Ela terminou. Ele deu as costas e fechava a porta enquanto dizia "Eu pensei que você já estava cansada de tornar a minha vida um tormento". "Espera!" Ela se exaltou, pondo-se em frente à porta, impedindo-o de fechá-la. Ele a encarou novamente, ainda descontente. Ela olhou para dentro da casa. Viu os vários livros, velas parcialmente derretidas e decorações macabras espalhados na mesa e nas estantes do humilde casebre. O pentagrama desenhado no chão com carvão. "Eu sei que você está tentando fugir do seu sofrimento. Eu não te culpo pelas coisas que você faz, eu entendo o que você sente. Eu sei que existe uma certa incompatibilidade entre nossos estilos de vida... Mas você é único para mim. Por favor, ouça o que eu tenho a dizer".

(...)

Os dois andavam lado a lado pela floresta, silenciosos. Ela ainda não tivera coragem para falar. Emaré chutava as pedras com seus pés descalços, cabisbaixo. Ela observava os grãos de poeira reluzindo nos raios de sol que passavam por entre as folhas das árvores. "Sabe, Ju... Eu não me encaixo no seu mundo. Quando éramos crianças eu até conseguia ver tudo de um ponto de vista positivo. Mas eu não queria seguir cegamente tudo o que o seus colegas hipócritas mandavam, e então me cuspiram na lama como se eu fosse sujeira em suas gargantas. E você simplesmente aceitou tudo, como se ideias não te perturbassem... Eu jamais conseguiria voltar a viver com você. Eu não suportaria ver as pessoas a quem você dá valor te rejeitando por minha causa. Ver sua vida ir por água a baixo por minha culpa seria uma tortura maior do que viver sem você. Eu achei que isso já estivesse claro, é terrível para mim te ver de novo. Você não sabe como eu fico quando volto para casa e me vejo sozinho, sem você..."

Julia fechou os olhos e parou de andar. "Me desculpa..." Ela disse, suspirando fundo. Depois olhou para frente, com o olhar apertado, e continuou a caminhada, com passos lentos. "Eu estou tão confusa... Eu quero estar ao seu lado. A minha vida tem feito cada vez menos sentido sem você. Para que viver? Às vezes eu penso..." Ela não conseguiu terminar, sua mandíbula tremia, mas ela não conseguia soltar nenhuma palavra. Emaré, que ficara a caminhada inteira olhando para frente, se virou, ao mesmo tempo curioso e preocupado com ela. "Às vezes eu penso em por um fim. Sabe? Acabar com tudo. Você é a única coisa que me solta das correntes que me prendem o tempo inteiro. As pessoas sempre exigindo de mim coisas que nem eu quero para mim mesma. Você é livre. Meu contato com você é a única coisa que me faz ver que a vida é muito mais do que as coisas que me cercam. Eu queria vir morar com você..." Emaré parou de andar. Ficou olhando para Julia com expectativa. "Por que não vem, então? Minha casa não tem espaço, mas nós podemos dar um jeito". Ela respirou fundo. "Não é bem assim... Como eu disse, existem essas correntes que me prendem. Minha família, minha casa, minha reputação, minha fé... É tão difícil escolher. Se eu considerasse só meus sentimentos, eu viria de prontidão. Mas existem tantas coisas em jogo... Acho que terminar a minha vida seria a melhor escolha para acabar com todo o meu sofrimento e com meus impasses."

Emaré acariciou o seu rosto. Julia olhou no fundo de seus olhos, suas olheiras intensificando sua expressão esperançosa. "Não pense assim. A gente pode tentar de novo, nunca é tarde demais".